sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Fernando, o simulador


(Conto longo e bobo inspirado em A última pergunta do Asimov.)

Fernando se aproximou de seu DX-100 com uma ideia nova. Lá por aqueles idos de 2740, não havia muito o que se fazer na rua. As pessoas passavam a maior parte de seu tempo conectadas, navegando na Rede, discutindo o sexo dos anjos.

Ele já havia desenvolvido várias simulações computacionais. Criar universos completos levavam muito tempo; gostava mais de simular apenas situações específicas, ecossistemas fechados, acelerar drasticamente a seleção natural entre alguns poucos competidores e apostar mentalmente em quem iria ganhar. Às vezes acertava, às vezes errava, às vezes as espécies deixavam de competir entre si e passavam a conviver. Ele já tinha criado um ou dois universos completos, mas baseados no Universo padrão, sem alterações.

As simulações o entediavam com o tempo. Era sempre a mesma coisa; os seres se desenvolviam, criavam consciência, procuravam por Deus, se tocavam que provavelmente estariam dentro de uma simulação e, quase invariavelmente, se exterminavam com suas próprias tecnologias.

Dessa vez ele queria algo diferente. Fernando selecionou da Rede a simulação de Universo padrão e deixou ela aberta. Procurou com cautela as leis que precisaria alterar e incrementou a regra que tinha imaginado. Foi um pouco difícil relacionar informação biológica com constantes físicas, mas ele conseguiu.

Fernando rodou a simulação e ficou olhando enquanto seu Universo se expandia, se formavam as estrelas gigantescas, que depois explodiam e formavam estrelas menores e planetas. As usual.

Se tudo corresse bem, a alteração de Fernando só faria diferença depois de vida consciente surgir em sua simulação de Universo. Enquanto esperava, ele navegou pela Rede, procurando sem sucesso por experimentos semelhantes. Logo surgiam na simulação primeiras moléculas orgânicas, o primeiro sinal de vida. Fernando tomava nota de cada desenvolvimento promissor em cada planeta potencialmente habitável.

Seu DX sofria. Já havia passado mais de uma semana e praticamente todo o poder de processamento da máquina era destinado à simulação. E Fernando esperava, paciente, quando a primeira consciência se formou em um planeta qualquer e suas alterações começaram (ufa) a dar resultados.

Na simulação de Fernando, todas as leis do Universo conhecido eram mantidas e apenas uma nova regra foi adicionada. Era uma adição simples de ser definida, apesar de ser difícil de se conceber: toda vez que algum ser imaginasse algo com sinceridade, com fé de que aquilo aconteceria, havia uma chance em cem de que o evento realmente acontecesse. Fernando chamou essa possibilidade simplesmente de 'milagre'. Qualquer coisa era permitida, de curar uma doença a criar asas, de se teletransportar a materializar nuvens no céu e fazer chover. Porém, não poderia ser algo que não tivesse materialização física (por exemplo, felicidade, imortalidade ou paz na Terra) nem contraditório com as leis fundamentais da natureza (voltar no tempo). No entanto, era possível materializar e desmaterializar praticamente qualquer coisa.

Fernando também tomou o cuidado de não permitir a passagem de eventuais alterações corporais aos descendentes, já que isso minaria todos os princípios da seleção natural. Além disso, depois do uso de um Milagre, o animal que o desejou não conseguiria realizar nenhum outro por pelo menos uma semana.

No começo as diferenças eram mínimas. Animais desapareciam das garras dos predadores e reapareciam distantes, em segurança. Predadores surgiam em cima de presas aparentemente vindos do nada.

Apesar de reduzir drasticamente a velocidade da simulação, Fernando percebeu que havia um problema fundamental em sua ideia. Ele havia medido a 'fé' dos animais através de padrões de ondas cerebrais. O problema é que mutações em determinados genes faziam os padrões de onda cerebrais serem facilmente atingidos, e a seleção natural acabava por 'preferir' os animais que tinham essas mutações. Afinal, é muito mais adaptável um animal que desaparece quando está a centímetros da boca do predador do que outro que simplesmente empenha todas as suas energias em fugir com suas patas.

O 'problema' se agravou rapidamente e logo todos os animais pensantes do pequeno planeta apresentavam o padrão de onda que Fernando tinha selecionado, praticamente durante o tempo todo.

Nesse ponto aconteceram eventos rápidos e interessantes. O padrão de onda começou a se desvalorizar entre os herbívoros, enquanto que entre grandes predadores ele foi fortemente estabelecido. A explicação para a desvalorização entre os herbívoros é simples; se muito cheios de fé, eles acreditavam que podiam enfrentar e vencer os predadores (uma possibilidade que somente uma vez em cada cem seria verdadeira e, mesmo nesses casos, uma vez por semana).

Únicos portadores da possibilidade do Milagre, os carnívoros se desenvolveram rapidamente e a cadeia alimentar entrou em colapso. Fernando teve que intervir, alterando a simulação enquanto ela estava sendo executada; alterou o padrão de onda buscado para um estado de consciência que conhecemos como Zen, que só poderia ser alcançado por animais que tivessem consciência de sua consciência.

As coisas se restabeleceram e continuaram um curso relativamente normal depois disso. Milhares e milhares de animais surgiram e desapareceram até que um pequeno bípede finalmente alcançou uma situação razoavelmente parecida à humana de desenvolvimento cerebral. Consciência de consciência, de consciência de consciência, etc

Os animais, chamados por Fernando de Obakus, se organizavam em grupos sociais e caçavam. A linguagem dos Obakus se desenvolveu devagar, mas logo transmitiam uns aos outros peripécias que haviam conseguido enquanto estavam em zen.

O tempo passou. Os Obakus se tornaram sedentários; animais foram domesticados. Corpos passaram a ser enterrados. E, é claro, a prática zen começou a ser entendida e praticada.

Em alguns momentos algum Obaku maluco desejava um martelo gigantesco pra esmagar o mundo mas, antes que algo grave pudesse acontecer, algum outro Obaku 'anulava' seu péssimo desejo com outro desejo. Foi por pouco em algumas situações, mas seu pequeno mundo sobreviveu.

E assim as coisas foram caminhando, e uma religião se formou, baseada em três verdades fundamentais:
- a adoração pelo Provedor do Milagre;
- o respeito por outros Obakus;
- o uso do Milagre apenas depois da aprovação dos mestres religiosos.

Por essa época, Fernando teve que intervir pela segunda vez. Os Obakus começaram a ficar folgados e, organizados socialmente, não faziam mais nada. Havia uma rotação entre 'desejadores de comida', 'desejadores de casas', 'desejadores de transportes', 'desejadores de construções'. Era muito mais fácil fazer as coisas pelo Milagre do que efetivamente produzindo. Toda a organização social dos Obakus se baseava nos desejos. Fernando não gostou disso. As coisas simplesmente não progrediam.

Fez uma alteração simples: deixou o Milagre muito mais raro: uma chance em dez mil. Além disso, criou limites físicos mais rígidos para os pedidos. Só se podia alterar o que se observava com os olhos; não era mais possível criar matéria/energia do nada (ela tinha que vir de algum lugar próximo, ser transformada). Não era mais possível alterar a realidade como antigamente.

No mundo dos Obakus, havia duas grandes massas de terra separadas por oceanos de água bem esverdeada. No continente leste, viviam os Obakus que se vestiam de azul e, no continente oeste, os Obakus que se vestiam de verde. A diferença fundamental entre eles é que os Obakus azuis dormiam com os pés voltados pro Norte, de acordo com os ensinamentos de um sábio antigo, e os Obakus verdes dormiam com os pés voltados pro Sul, de acordo com os ensinamentos de um outro sábio antigo, ou o mesmo, dependendo da interpretação.

A alteração de Fernando teve efeitos catastróficos sobre a economia e o mundo conhecido dos Obakus ruiu em poucas semanas.

Imediatamente, líderes políticos e religiosos dos dois continentes culparam o continente contrário pelos problemas em conseguir os Milagres. Alguns fundamentalistas afirmavam, nos dois continentes, que a simples existência do grupo concorrente era uma ofensa ao Provedor do Milagre e que, por isso, a desgraça se abatia sobre eles. Chegava o Fim, afirmavam.

E a guerra se abateu sobre o planeta. Os resultados de um confronto entre portadores do Milagre, mesmo com sua potencialidade reduzida, foram catastróficos; quase veio a extinção. Fernando observou de longe, rindo da situação, guerreiros explodindo as tropas inimigas usando paus, pedras e meditação zen. A capacidade de hipocrisia dos Obakus era enorme.

Mas finalmente a grande guerra, como ficou conhecida posteriormente, acabou. Nenhum continente conseguiu se manter organizado o suficiente para transmitir a seus seguidores uma informação sobre vitória ou derrota. Vieram tempos de paz; diversas religiões pacifistas surgiram. Os Obakus ainda usavam frequentemente o Milagre, mas aprenderam a dominar a Natureza de outras formas.

Devagar, engatinhando, surgiu a Ciência. E um grande cientista Obaku descobriu o padrão de onda que tornava possível o Milagre. E o tempo passou, e os cientistas chafurdavam mais e mais nas fundações da simulação, e vieram a Relativística, a Quântica. E um dia, nos cantos de um laboratório no meio da madrugada, um Obaku tentava resolver um problema clássico quando descobriu nas menores partículas da Natureza a inscrição do Milagre. Estava ali, sempre havia estado. Tudo se revelava a ele, o Universo fazia sentido, e ele entendia que estava olhando a Verdade por uma janela ampla, quase sem limites. Agora, eles poderiam manipular o Milagre, usá-lo para expandir os limites de sua raça, expandir a energia, o conhecimento. Antes eles tinham o Milagre; depois tinham o Conhecimento; agora tinham a infinitude do Milagre e do Conhecimento.

Fernando sorriu ao notar o que o cientista havia conseguido. Teve a impressão de que, por um segundo, ou por um milésimo de centésimo de segundo, o pequeno Obaku tinha visto a ele, Fernando, por trás de todas as camadas de software e hardware, por trás de toda a Simulação.

Fernando ainda sorria quando desligou o DX-100 e foi para a rua, procurar por alguém desconectado.

8 comentários:

Henrique Rossi disse...

Esse Fernando...

André disse...

É um fanfarrão, não?

Henrique Rossi disse...

Eu sou Fernando.

André disse...

Isso é pra ser entendido de que jeito, Henrique?

Henrique Rossi disse...

Do jeito literal.

André disse...

Ainda bem que não é Cardoso, não?

Mariana disse...

Adorei, sério.

André disse...

Obrigado, gente :)