quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Prenúncio de agonia

Respiro fundo.

O senta-levanta do computador pro sofá, do sofá pro computador, já ficou insuportável. Já desisti da ideia de não olhar o twitter. Como se na internet o jogo fosse outro. "E se no twitter falarem algo que não sei? E se estiverem vendo algo que eu não esteja?".

Agonia. Os minutos passam. Agonia e a imagem da escuridão logo ali, atrás da próxima esquina. A sombra dos pênalties e a ameaça da derrota de um minuto pra outro. Não é o medo do riso, da humilhação. O riso do rival só serve pra colocar o dedo na ferida que já existia, e continuaria a existir, mesmo se ninguém dissesse nada. A derrota amedronta em si mesma.

O tempo se move numa dilatação bizarra, o jogo em câmera lenta, os minutos fugindo incansavelmente na direção do passado. Falta menos, menos, sempre menos.

A bola rola de um lado para outro, sem objetivo. Muita vontade dos dois lados, um jogo de xadrez em que um ímpeto anula o outro. E ficam mais próximos os pênalties, a ameaça da derrota, a morte na próxima esquina. Como se fosse possível ser pior. Não há como ficar pior. Não, não quero mais ver isso. Vou olhar o twitter. Vou voltar pra TV. Vou tomar um banho, vou pular da janela.

Alessandro faz o inimaginável e entrega a bola pra Diego Souza. Alessandro maldito. Diego Souza corre com a bola, se aproxima do gol. Poucos metros entre o agora e a derrota, entre o futuro cheio de potencial e o consolo do "não foi dessa vez". Alessandro, filho de um demônio do quinto dos infernos. A bola vai pra fora, seja pelo Cássio, seja pelo receio do atacante, seja pela vontade de milhões. Alessandro volta a ser um legítimo representante da massa. Ele estava com o time em 2008, merece estar lá agora.

Segue o jogo.

42 do segundo tempo. Escanteio. Alex. Paulinho. Gol. Dele, o ex servente de pedreiro, o mais corinthiano dos corinthianos.



Normalmente me sinto meio deslocado por torcer por um time "de pobre". Deslocado por não ser exatamente pobre, por não me sentir uma pessoa simples, por não estar no estádio, por ser torcedor de internet, de butique. Por ter me afastado da torcida por vários anos. Por não ser da massa. Eu amo a ideia da massa, mas não faço parte dela - a não ser naquele momento. Por um instante infinitesimal, Paulinho, o torcedor abraçado, a massa no Pacaembú, eu, a favela, Tite se agarrando aos anônimos, a cadeia e o twitter estamos em uníssono.

Vai Corinthians. Pouco importa ganhar ou perder. A derrota é dolorida mas não é real; real é ser torcedor, ser corinthiano.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Principia

Creio que nem sempre estou certo. Não sei exatamente no que, ou já teria mudado de ideia, mas estou disposto a descobrir.

Creio que o mundo, hoje, é melhor do que há dez anos atrás. Creio que o mundo há dez anos atrás foi melhor do que o mundo há vinte anos atrás.

Creio que ideias boas e razoáveis também podem surgir de pessoas com pensamentos contrários aos meus.

Creio que existam pessoas boas e justas em todas ou quase todas as partes do espectro político.

Creio que são pouquíssimas as pessoas realmente más e que mais do que bondade ou maldade, o que mudam são pontos de vista e meios de chegar a objetivos diversos.

Creio que todos, sem distinção, são inocentes até que se prove o contrário.

Creio que as pessoas tenham direito de decidir plenamente como devam viver suas vidas, tanto que deixem os outros em paz em um nível aceitável.

Creio que unanimidades sejam realmente burras. Creio que verdade surge de discussão. Creio que tudo na vida seja passível de discussão.

Creio que em uma sociedade sadia as pessoas possam discutir e se ofender dentro de critérios razoáveis. Creio que um mundo em que todos concordam em tudo seria uma distopia terrível.

Creio que todo sofrimento deva ser evitado, mas nem todo deva ser proibido.

Creio que, em geral, quanto menos leis e regras melhor.

Creio que seja preferível alguém de quem discordo, mas que seja justo e coerente, do que alguém com quem concordo, mas que seja injusto ou carregue ódio em suas afirmações.

Creio que as coisas irão acabar bem (porque no fim há o escuro e o nada, e o escuro e o nada devoram todos os pensamentos e opiniões contrários).



Posso não seguir isso o tempo todo, mas se falho, é menos por hipocrisia e mais por descuido. Como já disse o Huxley, não existem hipócritas conscientes, exceto para ocasiões especiais. Também pode haver uma leve contradição entre as frases, mas nada que seja muito óbvio ou comprometedor.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Culpa [quase] cristã


Algumas pessoas gostam de encontrar mecanismos de substituição onde eles não existem. Você deixa de adorar a Deus, eles dizem, e passa a adorar o dinheiro. Eu acredito que a saída de uma ideia da mente (errada ou não) dá espaço a outras, mais novas, que também podem ser certas ou erradas. Mantendo o exemplo, se você deixa de acreditar que Deus define o que é bom e certo, vai ter que buscar novas fontes pro que acredita ser bom e certo (mesmo que a explicação seja tão simples quanto dizer que você segue a própria consciência).

A marca mais profunda que a religião me deixou foi a culpa. Mesmo depois de muito tempo já tendo abandonado os aspectos ritualísticos do credo, a culpa ainda estava ali, e ainda deve restar um pouco dela. Culpa por ser humano, por ser falho, por nascer errado. Você é todo errado, meu filho, eu fiz você [errado] mas você vai ser uma pessoa melhor se se sentir culpado por ter nascido humano por todos os dias da sua vida. Tem todo um aspecto psicológico envolvido, uma situação de vulnerabilidade perante uma autoridade (religiosa ou não), mas não vou entrar no mérito porque a discussão, hoje, é outra.

Durante essa semana, veio a público a tragédia dos índios Guaranis Caiovás, uma tribo de 170 pessoas que vive no Mato Grosso do Sul já em condições sub-humanas, e, ainda por cima, querem tirar a terra onde eles residem atualmente. A situação é realmente lamentável e tem uma petição online aqui (cuja eficiência é duvidosa, mas vá lá). Bom, Eliane Brum escreveu a respeito e começou seu texto assim:

"A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão."

Aí agora eu, que nunca sequer tinha ouvido falar dos índios Caiovás, sou cúmplice de genocídio. Você que está aí sentado na cadeira lendo,  e que, como quase todo mundo, acha que é uma pessoa que pisa na bola de vez em quando, mas que no geral é um bom ser humano, pois é, cúmplice de genocídio.

Sou só eu ou esse jeito de falar lembra um pouco a culpa religiosa?

Eliane Brum acha que porque fazemos parte da civilização em que o problema ocorre então somos responsáveis pelo problema. Pela mesma lógica, também somos responsáveis pelas mortes na guerra do Iraque, pelas mortes no Word Trade Center, pelos espanhois pilhando as culturas nativas americanas etc etc etc. Somos responsáveis pela criança que pede dinheiro no sinal e pelas fábricas cheias de escravos da Nike.

De certa forma o raciocínio não é de todo errado, já que, pra viver como vivemos, ocorreu um processo em que todas essas coisas aconteceram ou ainda estão acontecendo. Mas não somos agentes ativos em nenhum dos casos. Mesmo no caso de omissão, não é como se alguém estivesse te contando "olha, vou ali matar uns índios mas não conta pra ninguém, tá?". A situação é muito mais complicada e no geral, como bem disse a Tina, o cidadão comum mal sabe o que fazer.

Obviamente temos que fazer algo a respeito de todas essas coisas. Obviamente chamar a atenção é importante. Acusar de uma forma tão direta ajuda em quê? Devo me sentir culpado porque não me sinto culpado pela situação dos índios?

Mas a causa indígena é só um exemplo. Algumas pessoas defendem causas (totalmente legítimas) de uma forma muito equivocada. "Todo homem é um estuprador em potencial." Cansei o número de vezes em que li coisas parecidas, ou textos que tergiversam em torno da ideia mas não a nomeiam diretamente. Em tempo: eu me identifico com a causa feminista, acredito que eu mesmo seja feminista, acredito que esteja fazendo a minha parte, eu tento evitar a todo custo ter atitudes machistas e... ganho um carimbo de "estuprador em potencial"? E não é só uma pessoa falando, é fácil de comprovar.

[Não vou citar mais exemplos porque o post já está bom em polêmica, mas, acreditem, parei por conveniência e não por falta de material.]

Não sou genocida, não sou estuprador em potencial, não sou racista por ter nascido em uma sociedade em que o racismo é tolerado. Rejeito esses rótulos e não me sinto culpado nem por ter nascido homem, nem por ter nascido branco, nem por ter nascido ocidental. Mas não me orgulho disso, aceito como um fato qualquer, algo que veio de fábrica e que não posso mudar. Me orgulho de viver a cada dia tentando ativamente não ter atitudes machistas, racistas, preconceituosas, e educando meu filho pra que, no caso dele, essas atitudes sejam ainda mais raras e que o mundo, em geral, seja um lugar melhor. E, tomara, um mundo com menos culpa.