segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cotas

Há algum tempo atrás, quando começou a se falar seriamente sobre cotas no ensino público brasileiro, eu fiquei com um pé atrás com a ideia. Não conseguia ligar os pontos, não fazia muito sentido; mas eu aceitava, levando em conta que muitas pessoas a quem eu admirava/admiro apoiavam o sistema.

Hoje já não acredito mais na ideia em nenhuma das formas em que ela se apresenta.

Cotas raciais, pra mim, são um completo absurdo. Basta imaginar que existem negros ricos que podem se beneficiar do sistema. Que sentido faz um sistema de cotas que beneficia alguém que já é 'beneficiado' pelo estado atual das coisas? Alguém que já conseguiu transpor os séculos de escravidão e preconceito? Existem outros preconceitos fora o simples acesso aos benefícios de uma classe superior, mas claramente um dos problemas já teria sido resolvido, nesse caso o exato problema que está se tentando resolver.

As chamadas cotas sociais tem uma profundidade um pouco maior. Pessoas de baixa renda com poucas oportunidades de estudo e preparação para o vestibular teriam acesso mais fácil ao ensino superior gratuito; faz sentido. Na prática, são definidas cotas para estudantes oriundos de escolas públicas, e algumas universidades já estão trabalhando com cotas de até 50%.

Aí é que surge o problema.

Imaginem a família A, cujo chefe é o pai, sr. Marquinho. O sr Marquinho não ganha mal. Ele tem dois carros, gosta de passear e torrar a grana com roupas de marca, viagens e tudo mais que possa conseguir. Mas não é rico, e por isso alguma coisa fica faltando: no caso, falta o dinheiro pra colocar o Marquinhos Jr na escola particular. Então o Marquinhos Jr estuda na escola pública, mesmo. O sr Marquinho não está muito preocupado com isso.

Agora imaginem a família B, cujo chefe é o pai, sr Valdevino. O sr Valdevino ganha, pra fins de exemplo, exatamente a mesma coisa que o sr Marquinho. A diferença é que ele gasta o seu dinheiro com livros, programas culturais e com a melhor educação que conseguir prover para o filho, o Valdevino Jr. O pequeno pimpolho do sr Valdevino então estuda em escola particular, apesar do pequeno aperto que as mensalidades causam nas finanças da família. *

Diante dessa situação, se a cota social observar apenas a escola de origem do aluno (como é feito hoje), a família que dá menos atenção e valor à educação é beneficiada, sendo iguais as situações de renda. É um contra-senso enorme: o aluno cuja família valoriza mais o estudo é punido por causa dessa mesma valorização.

Pode ser ainda pior, se o sr Marquinho for esperto e contratar uns professores particulares por fora para o Marquinho Jr. Ele continua sendo oriundo de escola pública e ainda pode contar com o sistema de cotas mas, ainda assim, pode ter teoricamente o mesmo benefício que teria um estudante de escola particular.

Claro que a situação pode ser melhorada caso levem-se em conta as declarações de renda das famílias. Mas a verificação tende a ser muito mais complexa, e declarações também podem ser burladas, fraudadas, subfaturadas. Como sempre foram, como sempre vão ser.

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* - Foram citados os homens chefes de família apenas por razões de simplificação. Podiam ser muito bem a senhora Dolores e a senhora Creuza.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Foucault e o sistema

(Alguns spoilers de Tropa de Elite 2 adiante)


Quando eu era adolescente, adorava falar do tal 'sistema'. O sistema era uma coisa inexprimível com outras palavras, um amontoado amorfo que aglutinava tudo o que pertencia ao status quo e/ou era de alguma forma diferente do que eu acreditava ser correto. Com o tempo, notei que o termo não carregava sentido nenhum e fui me afastando dele e da ideia que carregava - enquanto, ao mesmo tempo, notava que muitas das pessoas que falavam do tal sistema não tinham a menor ideia do que queriam dizer. Assim como eu.

Fiquei surpreso ao ver que o Tropa de Elite 2 usava essa mesma terminologia. E mais surpreso ainda quando o filme mostrou que o termo pode, sim, carregar algum significado. O sistema, para o Tropa 2, é o modo corrupto com que as coisas são feitas, o dia-a-dia da falcatrua, o leviatã de mil cabeças formado por uma pseudo-organização totalmente descentralizada. O sistema é a carteirinha de estudante usada além do limite, os 50 reais pra escapar da multa de trânsito, a nota fiscal em valor mais alto pra enganar o chefe, o desvio no imposto de renda, a ultrapassagem pela faixa da direita. O sistema é o jeito Gerson de levar a vida.

No primeiro filme surgiu o Capitão Nascimento, uma figura violenta e incorruptível que levou ao delírio a classe média pouco-intelectual, meio-reacionária. (Perdi a piada? Conhecem o texto do meio-intelectual, meio de esquerda? Então, é o equivalente serrista dele). Agora, no segundo filme, algumas pessoas disseram que o Coronel Nascimento finalmente se rendeu ao ativista de Direitos Humanos e reconhece a inferioridade de seu método. A esquerda venceu, acreditam.

Não concordo. No segundo filme, o Coronel Nascimento reconhece que o problema é mais complexo do que parecia ser no início; mesmo assim, Foucault continua sendo (para ele) um idiota. E o filme vai mais além, e deixa a impressão de que não importa muito a sua opinião sobre Foucault quando existe um outro Estado parasitário dentro do original. Entre os que querem que o Brasil se desenvolva, uma discussão ideológica é possível; mas antes disso, é preciso eliminar os corruptos que infestam toda a cadeia policial/governamental. Não há ideologia que resolva quando o bolso do deputado vem na frente.

O filme fala muito pouco de corrupção e interesses escusos nos meios privados, o que é perdoável, já que não é esse o foco. Os jornalistas, em Tropa de Elite 2, são tratados como guardiães da verdade. Há a exceção do programa policial wagnermontístico, mas ainda acho muito pouco. Talvez haja assunto para um terceiro filme nesse espaço; mostrar que as coisas não são sempre assim, que a mídia também é um poder que pode ser corrompido e manipulado.

Finalmente, vale lembrar que a polícia e o Estado são subgrupos da população; se a população é corrupta, os policiais serão corruptos e os políticos serão corruptos (assim como dentistas, advogados, analistas de sistemas, etc, etc). A diferença é que, quanto mais poder o corrupto possui no mundo legal, mais estrago ele faz quando se entrega ao mundo ilegal.

A desesperança que fica quando acaba Tropa de Elite 2 é terrível - provavelmente por soar tão verdadeira, tão factível.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vencer e vencer

- Estava pensando hoje sobre formas de jogar Starcraft. Tem vários jeitos. Você pode fazer sempre a mesma coisa e ir aperfeiçoando o estilo, ou pode fazer algo diferente a cada jogo e tentar sempre reagir de acordo com seu oponente.

- Hm. Sei.

- Isso me fez pensar no Kafka.

- Por que ele contava a mesma história de formas diferentes?

- Isso. Parecem histórias diferentes, mas no fundo é sempre a mesma história. Muitos grandes autores têm um tema central que se repete e eles vão trabalhando esse mesmo tema sob diversas variações, história a história. Pro Kafka, é o não-saber, o não-conseguir. Pro Borges, é o infinito, o gaúcho, a morte, a brincadeira com a imortalidade.

- Mas jogar Starcraft sempre da mesma forma não é enjoativo?

- Não se você sempre conseguir vencer.

- Mas na vida - e na literatura - não existe um 'vencer'. Você pode agradar mais pessoas, ser mais popular, mais conhecido, mais rico, mais bonito, mais saudável, escrever melhor... e nem por isso vai estar ganhando o 'jogo da vida' do miserável doente feioso analfabeto e sem amigos que mendiga na frente da minha casa. Não há como medir isso.

- Você com certeza vai ser mais feliz do que ele.

- E desde quando ser feliz é objetivo e não subjetivo? Fora a paranóia da 'busca pela felicidade' que vivemos hoje em dia. Em outras épocas, outras coisas importavam muito mais do que ser feliz; honra, dignidade, coragem. Não que essas coisas sejam 'boas' e ser feliz seja 'ruim', mas não dá pra dizer que ser feliz é um critério melhor pra medir o sucesso na vida.

- Acho que concordo. Mas isso é deprimente demais.

- Sim. Faz parte do vazio. Do não-saber. Não há um manual, por mais que os autores de auto-ajuda pessoal e esoterismo vagabundo digam que haja. Não há regras.

- Talvez haja e não saibamos delas.

- Sim, mas nesse caso, o efeito é o mesmo de simplesmente não haver. Se existem regras e não sabemos quais valem, que diferença faz elas existirem? É a Biblioteca de Babel do Borges; todos os livros estão ali, mas são todos inúteis porque não se consegue saber quais estão certos e quais estão errados.

- Não vale a pena tentar assumir um como verdadeiro? Vai te dar conforto, e possivelmente você esteja certo.

- Claro, é uma escolha válida, mas não se você a fizer pensando da forma que você colocou; nesse caso, fica hipócrita. Pra mim, não serve. Não se escolhe no que queremos acreditar ou não, simplesmente se acredita ou se deixa de acreditar.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Eleições e esvaziamento de discurso

Eu fiz uma promessa mental de não falar diretamente sobre as eleições. Mas como não venho tendo assunto pra nada, resolvi escrever sobre apenas um aspecto dela, que tem sido muito notável do fim do primeiro turno pra cá: a generalização do discurso.

Nos EUA, como todos sabem, o sistema é bipartidário. Existem outros candidatos mas, basicamente, a opção do eleitor é entre o liberal e o conservador. E, apesar dos discursos mudarem ano a ano de acordo com as circunstâncias, os candidatos (pasmem!) defendem ideias diferentes durante a campanha. Os republicanos tendem a gostar mais de impostos mais baixos, menos benefícios sociais, mais gastos com segurança nacional, menos intervenções estatais na economia. Os liberais tendem a gostar mais de impostos mais altos, mais benefícios sociais, leis de imigração menos rígidas e mais intervenções do Estado na economia. Obviamente, os candidatos em si fazem diferença, mas olhando para seu partido você tem um framework das ideias daquela pessoa.

No Brasil, é uma festa. Todo mundo apoia a ideia mais popular, não importa se vai contra suas convicções pessoais sustentadas há décadas, pelo candidato e pelo partido. Há diferenças notórias entre os dois candidatos, mas, de certa forma, eles são muito parecidos. Como diria a minha mãe, 'tudo farinha do mesmo saco'.

Parece uma análise muito superficial, mas não é. Serra pretende ampliar o Bolsa Família, maior bandeira do PT no governo; Dilma 'voltou atrás' em suas convicções sobre o aborto e agora se diz contra a legalização. Serra, o economista, tenta se colocar como candidato dos pobres, o Zé. Dilma, a ex-comunista, agora escreve cartas ao 'povo de Deus'.

É claro que as coisas não mudam do dia para a noite; Serra provavelmente mudaria alguma coisa no Bolsa Família para que o programa ficasse mais a seu gosto; Dilma provavelmente será sempre favorável à legalização do aborto. Óbvio também que isso pode ficar apenas dentro de sua cabeça e nunca se manifestar.

O que acontece na prática é que os dois candidatos tentam se transformar em um terceiro, um candidato-nada que defende ideias contraditórias em um mesmo discurso vazio. Ele é a favor de diminuir os impostos e os juros, mas também quer aumentar os investimentos sociais e em infraestrutura. Ele é a favor da independência feminina e contra o aborto; ele é contra a censura mas a favor de leis que controlem o que as crianças vão ver na TV.

Não se pode ter tudo. O que Serra fez no primeiro turno (se colocando ao lado de Lula nos comerciais, por exemplo) e o que Dilma está fazendo no segundo é lamentável. O que surge diante de um eleitor mais consciente é uma absoluta falta de coerência, como se ideias, princípios e convicções pudessem se transformar em velas guiadas pelo vento da opinião pública daquele momento em particular.

Pouco importa o nome daquele que tiver maioria em 31 de outubro, o candidato eleito não vai ser Serra nem Dilma. Será um terceiro, totalmente imprevisível, já que é impossível atender a dois princípios conflitantes simultaneamente. Ao invés de dois candidatos, não temos nenhum.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ruanda, Dilma e outras dúvidas

Recentemente terminei de ler 'Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias'. É um ótimo livro, mostrando o trabalho investigativo de um repórter depois do genocídio étnico de 1994 em Ruanda. Conta até a história que acabou virando o filme Hotel Ruanda (mas não sei se o filme foi inspirado diretamente nesse livro).

Uma das coisas que me deixou impressionado é que o autor, descrevendo inúmeros exemplos, mostra que a chamada 'opinião pública internacional' não tinha a mínima ideia do que havia acontecido em Ruanda, muito menos o que seria o melhor a fazer depois do ponto de inflexão que foi o genocídio. E não me refiro ao cidadão José da Silva, que mora em Santana do Parnaíba e se informa pelo Jornal Nacional; o livro demonstra a crônica desinformação (e/ou falta de decência) de chefes de Estado, jornalistas e diplomatas dos países mais poderosos do mundo.

É claro que a imprensa e os Estados em geral são construções falíveis, assim como qualquer instituição humana. O que me incomodou nesse caso é que todos erraram da mesma forma. Não havia divergência de opiniões: fora de Ruanda, a opinião hegemônica era completamente infundada.

Fiquei regurgitando tudo isso e me toquei o quanto é difícil saber em quem confiar. Vejam, por exemplo, os recentes escandalos-relâmpago em torno da candidatura presidencial da Dilma Roussef. Devo confiar na Folha e na Veja* ou devo confiar na palavra dos representantes do Governo e da Receita Federal?

Mas o exemplo é ruim. Imagine um caso em que duas pessoas desconhecidas estão brigando e, vendo você, pedem a sua ajuda, cada uma pra um lado. Claro que a ética comum recomendaria separar a briga; mas imagine que então os dois se acusem mutuamente de assassinato de um familiar, e que você não tenha nenhum telefone próximo. Ambos dizem: 'Ele matou a minha mulher, segure ele e vou chamar a polícia.'

É claro que existe um fundamento, uma verdade; um dos dois está correto, o outro está mentindo. Mas não há um meio prático, objetivo, de identificar a verdade antes de tomar uma atitude. Não há como ir até o Afeganistão e saber pessoalmente qual é o lado 'correto' da guerra (se é que há algum lado correto); temos que escolher, talvez até intuitivamente, em quem confiar. E depois que fazemos a primeira escolha, é muito difícil mudar de lado, mesmo quando confrontados com fatos contrários.

O melhor seria sempre examinar com cuidado as opiniões em conflito e tentar escolher a mais fundamentada. Mas isso, é claro, não é simples. Nem um pouco simples, sem ter acesso aos fatos diretamente.

Bom, nesse post, fico por aqui. Pretendo voltar a escrever mais, como já pretendi muitas vezes. Mas acho que dessa vez é sério.

* - Que mundo estranho é esse que agora coloca Veja e Folha no mesmo barco?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Cinco livros que mudaram minha vida

Gosto muito de ler. Mais do que um hábito, é uma experiência que faço por prazer, como bem disse a Deh. Claro, livros existem aos montes, bons e ruins, felizes e tristes, animados e parados... mais do que a mídia, importa o conteúdo. E, mesmo não sendo muito bons, alguns livros nos marcam por alguma razão - um insight, uma ideia, o resumo de algum pensamento que vínhamos cozinhando há pouco ou muito tempo.

Pensei nisso durante alguns dias e cheguei a uma pequena lista - não dos melhores livros que já li, mas sim dos livros que, por uma razão ou outra, mudaram minha perspectiva sobre o mundo ou sobre minhas próprias ideias. Aí está.

Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Márquez
'Cem anos de solidão' é o livro que eu escolheria, se precisasse escolher um só, para levar a uma ilha deserta. Quase com certeza não é o meu livro preferido (apesar de entrar na lista dos cinco preferidos), mas é memorável por conter várias boas histórias que se unem em uma única grande história. Ação, romance, intrigas, suspense policial, fantasia, realismo... não tem como enjoar.

Encontrei G.G. Márquez em uma época em que estava meio desgostoso da literatura, cansado de ler livros bons, mas pesados. 'Cem anos' pode ser pesado, dependendo de como você olha pra ele... mas também pode ser leve, dependendo da perspectiva, do humor de quem está lendo.

E, é claro, não há como me esquecer de Melquíades, Úrsula, e de todos os Aurelianos e Josés Arcádios que povoam a história. Só de lembrar dá vontade de reler. 'Cem anos' me fez voltar a gostar de ler. 'Cem anos' me mostrou como, cem anos atrás, as coisas eram tão diferentes que às vezes Macondo parece ser outro planeta - e, ao mesmo tempo, tão próxima, tão estranhamente familiar.

O mundo assombrado pelos demônios - Carl Sagan
Eu acreditava no poder mágico dos cristais. Em Ashtar Sheran (mas não muito). Gostava de Paulo Coelho. Achava que Arquivo X continha um 'quê' de verdade por trás da ficção. Sério. E eu era religioso, muito religioso.

Obviamente, não posso responsabilizar um único livro por uma série de transformações que começaram bem antes e não terminaram até hoje, mas ele com certeza foi um ponto de inflexão no meu jeito de raciocinar. O método, o rigor, o ceticismo cauteloso, a desconfiança podando o deslumbramento... por tudo isso devo muito ao Carl Sagan, particularmente por esse seu manual de ceticismo diante das credulidades modernas.

Recentemente, dei uma cópia do livro a um grande amigo, companheiro na época dos cristais (e do esquerdismo, que vai ser visto mais adiante); ele disse ter gostado, mas continua dissertando sobre a Atlântida e outras coloridas teorias conspiratórias. Talvez cada livro, afinal, precise de um leitor com quem se encaixe no momento certo.

Ficções - Jorge Luís Borges
Fiquei sabendo sobre o Borges bem tarde na vida; no segundo ano de faculdade, durante uma peculiar aula de Cálculo II, um professor recomendou o conto 'A Biblioteca de Babel' ao tentar, de maneira bem infrutífera, nos assombrar com o conceito do que é o infinito. Digo infrutífera porque ele, o professor, não conseguiu nos surpreender, mas Borges sim - talvez não particularmente nessa história (afinal, a Biblioteca não é necessariamente infinita, apenas inimaginavelmente grande), mas sua obra, por inteiro, tem cheiro de infinito.

O que mais gosto em Ficções é o jeito com que Borges brinca com os sonhos, as divagações, e de repente puxa a história por um cabo trazendo tudo, aos trancos e barrancos, de volta à realidade. Borges mudou minha perspectiva sobre a Ciência ao mostrar como o Universo tem uma profunda intimidade com a Matemática, e como somos tolos ao pensar que dominamos conceitos como 'vida', 'infinito', 'imortalidade'. Ficções também me faz pensar em como era fácil, para alguém genial como ele, construir mundos profundamente diferentes do nosso, brincando apenas com uma ideia.

O processo - Franz Kafka
'O processo' foi o primeiro livro de Kafka em que pus as mãos. Li feito um louco, até o fim, e então comecei a ler tudo o que conseguia dele, sem pausa. Só não me atrevi a ler o 'Carta ao pai' por não gostar de leituras muito pessoais e não consegui terminar o 'América' (por achar o estilo diferente e, me perdoem, chato).

Não vou me atrever a fazer nenhum comentário sobre o estilo, a técnica ou a beleza de nenhum dos livros da lista - e menos ainda sobre qualquer livro de Kafka. O que posso dizer é que, lendo sua obra, sinto uma conexão estranha com os mundos bizarros que ele criou, cheios de idas e vindas, tentativas mal-sucedidas, falhas pisadas e repisadas. Os finais não são novidade, nunca são novidade; alguém que já leu um dos livros conhece a estrutura de qualquer outra história e, com exceção de alguns detalhes, sabe muito bem como ela vai terminar. E, mesmo assim, reler 'O Processo' me prende mais do que qualquer lançamento do Dan Brown.

Li alguém comentando que Kafka, quando criava suas metáforas sobre objetivos inalcançáveis e rodeios em torno de um destino invisível, estava na verdade falando sobre Deus. Não consigo imaginar jeito melhor de abordar o assunto.


Admirável mundo novo - Aldous Huxley
Além de acreditar em cristais, Atlântida, Chakras, Horóscopos e outras bobagens, eu fui, por um curto período de minha vida, algo que se pode chamar de 'comunista de boutique' - um desses adolescentes que usam camiseta do Che e acham que o planeta seria um lugar bem melhor se o mundo todo ouvisse as ótimas ideias que eles têm sobre tudo. 'Admirável mundo novo' mudou isso - e, como se já não bastasse, ainda me deixou com um certo trauma (que conservo com orgulho) quanto a excessos de regulamentação estatal. Por ter lido Huxley (não só por isso, mas também por isso), sou contra ações afirmativas, câmeras de vigilância, intervenções do Estado em assuntos privados, e umas mil outras questões que parecem pequenas mas que são, juntando tudo, bem importantes.

Acabei lendo o '1984' muito tempo depois e, apesar de achar que Orwell era um melhor escritor, acredito que Huxley estava mais certo em seus insights. Por exemplo, em '1984' a população é mantida ignorante através da sonegação de informação; em 'Admirável mundo novo', pelo excesso de informação inútil. Nem preciso dizer qual está mais próximo de nossa realidade. Agora me dêem licença que vou voltar ali pro twitter.

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Menção honrosa: Desobediência civil e outros escritos, de Thoreau, por me dar a noção de como o Estado pode ser repressor mesmo em uma sociedade dita democrática, quase entrou na lista.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Notas sobre a copa


* - A Copa me faz lembrar de uma passagem do Carl Sagan em que ele relaciona o Monday Night Football e as caçadas tribais. Os jogos, segundo ele, nos remetem a um passado primitivo em que dependíamos diretamente (e diariamente) de nossa força e do espírito de grupo para acordarmos vivos no dia seguinte. Por isso os esportes nos atraem tanto; os jogos psicológicos de força, domínio e controle estão enraizados profundamente em nossos genes. Muitos dos lances considerados plasticamente mais bonitos são os que mais humilham os adversários. Gostar de futebol deve ser genético. (Link digno de nota, não pela música mas sim pelo clipe: Marilyn Manson - The Fight Song)

* - Enquanto se desenrolavam os diversos conflitos entre o Dunga e o coletivo abstrato de pessoas conhecido vagamente como 'a imprensa', a leitura de Dom Quixote me ligou alguns pontos. Dunga adora moinhos de vento, inimigos imaginários. Pouco importa que os moinhos estejam lá ou não, se são de fato inimigos ou não; o que importa é criar um símbolo, um motivo, um inimigo. Normalmente a tática funciona, criando uma cortina de fumaça que esconde os problemas reais, mesmo quando usada inconscientemente. Mas não basta só isso, como se viu.

* - Eu voto no Marcelo D2 pra compor a música oficial da Copa de 2014. Iria ser bem divertido. E que houvesse música autenticamente nacional na abertura - de Demônios da Garoa a Almir Sater, de Ivete Sangalo a Nação Zumbi. Mas devem ficar só com a Ivete, mesmo.

domingo, 20 de junho de 2010

2012 e o complexo da vergonha tecnológica

All our scientific advances,
our fancy machines...

The Mayans saw this coming
thousands of years ago.

Professor West

Finalmente, assisti 2012. Não me lembro de onde tirei a ideia de que era um filme sobre invasão alienígena. Fiquei surpreso quando vi meus piores medos (com relação ao filme, e não com relação ao fim do mundo) se tornarem realidade: tempestades solares, alinhamentos cósmicos, etc e tal. E, é claro, todos os chavões que se possam colocar no mesmo filme. Uma mistura esquisitíssima de Guerra dos Mundos, O dia depois de amanhã e os discursos lambentáveis de Armageddon.

O que me deixou mais encucado foi pensar nesse complexo de vergonha científico-tecnológica em que gira o filme. A frase do professor West, um cientista (rá!), deixa esse sentimento bem claro. Nós, com nossas máquinas, com nossa Física, com nossa tecnologia, não sabemos de nada sobre o mundo enquanto os maias, com seus sacrifícios humanos, seus espelhinhos e penachos já sabiam de tudo há muito tempo.

Fiquei pensando que essa ideia permeia o discurso de todas as áreas a quem, por um motivo ou outro, interessa colocar em uma perspectiva não muito luminosa o progresso científico. Por exemplo os cristãos, a quem interessa frear pesquisas com polêmicas éticas, gostam de falar que o ser humano avançou muito tecnologicamente mas muito pouco moralmente. As pseudo-ciências (astrologia e afins) denunciam teorias conspiratórias em que os cientistas escondem os benefícios inigualáveis de suas práticas duvidosas.

Asimov fala em alguns de seus livros do 'complexo de Frankenstein', o medo de que nossas criações robóticas se rebelem contra seus mestres. Eu acredito que esse complexo é uma manifestação de um pensamento mais profundo, mais enraizado, que se dirige contra qualquer forma de progresso tecnológico.

Sabem Hogwarts? É como se vivêssemos lá. Legal mesmo é fazer as coisas com mágica - e quem não tem propensão pra mágica, quem tem que pesquisar as regras que fazem o universo funcionar, esses são todos trouxas. Fazer as coisas com pesquisa, ciência, tecnologia, isso é coisa de otário, quem é bom de verdade lê o futuro na borra de café.

A impressão que fica é que quando se usa tecnologia estamos de alguma forma 'trapaceando'. Uma coisa meio 'ah, assim até eu'. 'E daí que vocês mandam sondas pros limites do sistema solar? Os egípcios construíram pirâmides enormes antes de inventarem o desodorante roll-on.

O mais irônico é que se a 'mágica' fosse possível, factível, ela inevitavelmente seria entendida, explicada, quantificada. Claro que a explicação seria limitada apenas à descrição do fenômeno (por exemplo, 'diga alakazumba girando a ponta da sua varinha de condão no sentido anti-horário para fazer surgir um elefante do nada'), mas é exatamente assim que são descritas as leis físicas. Ninguém entende bem por quê a gravidade funciona como funciona, mas todos sabemos como ela funciona.

De certa forma, pensando por esse lado, mágica de fato existe. Mágica é a regra por trás da regra, a essência por trás das manifestações. Ou não.

(Pior mesmo são as pessoas que misturam os dois mundos, com efeitos particularmente desastrosos - como o técnico francês que, diz-se, não convoca jogadores de Libra e Escorpião para a sua seleção. Pelo visto suas regras não ajudaram muito.)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Porque os neo ateus falharam, e como derrubar todos os argumentos religiosos com um passo simples

Há algum tempo eu acompanho o blog do Luke Muehlhauser, chamado Common Sense Atheism, em que ele escreve com muita propriedade sobre filosofia, moralidade e religião. Ontem ele postou no site uma palestra que deu ao grupo 'Rational Thought' de San Diego, eu li, gostei, e resolvi traduzir.

O original da palestra está aqui, com o vídeo do youtube e o texto que transcrevi.

O título é temerário e, claro, ninguém consegue fazer milagres (ops). Mas as ideias são muito boas.

Perdoem o post muito longo e a tradução mambembe.



Olá a todos. Meu nome é Luke Muehlhauser, e eu já fui um cristão renascido, batizado, puxa-saco de pastor por 21 anos, em Minnesota. Com vinte anos eu não queria nada da vida a não ser copiar a Jesus em um mundo perdido e hostil. Então eu tive que descobrir quem Jesus realmente foi, e eu comecei a estudar o Jesus histórico.

O que eu aprendi, até mesmo de estudiosos cristãos, foi um choque. A Bíblia é cheia de contradições. Os autores do Novo Testamento têm teologias diferentes, e até a pregação de Paulo era bem diferente da pregação de Jesus, e foi a pregação de Paulo que se tornou o Cristianismo que conhecemos hoje. O Cristianismo na verdade deveria se chamar Paulinismo.

Isso foi bem amedrontador porque todos os meus sonhos, todos os meus planos, todas as minhas relações com outras pessoas, todo o meu conforto giravam em torno de ser um Cristão. E eu li o trabalho de historiadores e filósofos Cristãos conservadores para tentar recuperar minha fé, mas para ser justo li um pouco de material cético também, e descobri que aquilo os céticos diziam tinha um sentido simples e direto, enquanto os apologetas Cristãos tinham que fazer muitas acrobacias intelectuais só para dizer que o Cristianismo era defensável.

Então eu perdi minha fé e agora eu tenho um website popular sobre ateísmo e moralidade.

O título da minha palestra hoje é 'Porque os Neo Ateus Falharam, e Como Derrubar Todos os Argumentos Religiosos com um Passo Simples'.

E esse é um título bem sensacionalista, e eu espero que vocês estejam céticos quanto a ele. Mas eu quero também mencionar que nada do que direi aqui hoje é original. Eu só estou popularizando e sumarizando o trabalho de filósofos profissionais em periódicos técnicos que ninguém lê.

Mas vamos conversar sobre aquela primeira parte: Porque os Neo Ateus Falharam. Você pode dizer 'Luke, mas como você pode dizer que os Neo Ateus falharam? Ateus estão saindo do armário às pencas. Os famosos Neo Ateus como Richard Dawkins e Christopher Hitchens e Sam Harris estão aparecendo em programas de TV e de rádio em todos os lugares só pra falar sobre ateísmo. E livros sobre ateísmo estão vendendo milhões de cópias, pela primeira vez na história. Você chama isso de falha?'

Bem, claro que não. Eu sou extremamente grato aos Neo Ateus.

Onde os Neo Ateus falharam é algo diferente, mas também muito importante para eles: eles não conseguiram construir um caso intelectual forte para o ateísmo.

Eu tenho certeza de que Richard Dawkins não iria gostar dessa afirmação. Mas ela é ponto pacífico entre aqueles que discutem a existência de Deus como trabalho: filósofos profissionais. Eu falei com dúzias deles, crentes e ateus, e nenhum deles pensa que algum dos Neo Ateus construiu uma fundação intelectual sólida para o ateísmo.

Claro que os filósofos religiosos escrevem muito sobre os Neo Ateus porque estão eufóricos para mostrar como os argumentos são ruins, mas filósofos ateus simplesmente os ignoram porque estão trabalhando com argumentos melhores e não há nada para aprender com os Neo Ateus.

Eu vou dar a vocês só dois exemplos.

O primeiro argumento é o que Richard Dawkins chama de 'argumento principal' em seu livro 'Deus, um Delírio'. É um argumento de seis passos, mais ou menos assim. Ele diz, 'Veja, se você vai postular que Deus é a melhor explicação para o flagelo bacteriano ou o olho humano, isso não ajuda em nada, porque um designer inteligente desse negócio teria que ser ainda mais complexo. O seu cérebro, quando você desenha alguma coisa, tem que ser infinitamente mais complexo do que a coisa que você desenha. Então se você vai dizer que é improvável que coisas complexas venham a existir, então precisamos de Deus para explicar isso, e você tem um problema ainda maior com Deus, porque ele é ainda mais complexo. Então é bem improvável que um Deus complexo venha a existir. No melhor caso, Deus teria que se desenvolver por um longo processo gradual como a Evolução.'

Então esse é o cerne de seu argumento. Por que ele falha?

O primeiro problema com o argumento de Dawkins é que ele é logicamente inválido, o que quer dizer que mesmo se todas as premissas forem verdadeiras, o que não tenho certeza que sejam, elas ainda não provam a conclusão. Mas vamos dizer que Dawkins não estava dando um argumento lógico, mas sim alguma espécie de rascunho confuso na direção de um argumento que ele quer fazer mas que nunca faz. Mesmo assim, não é muito útil.

O segundo problema é que Dawkins está tentando contra-provar um Deus em que quase ninguém acredita. Deixem-me explicar. O Deus que Judeus, Cristãos e Muçulmanos acreditam é todo-benevolente, todo-poderoso, não-físico, pessoal, eterno e necessário.

E essas duas últimas qualidades que criam um problema para Dawkins. Porque se Deus é eterno ou necessário, então ele não 'veio a existir'. Deus não é o tipo de ser que vem a existir como eu e você, ele é supostamente uma característica obrigatória de qualquer mundo possível, e ele sempre existiu. Então se Dawkins diz que é improvável que um Deus assim tenha vindo a existir, então ele só está contra-provando um Deus em que quase ninguém acredita.

Isso tudo vem de um artigo do filósofo ateu Erik Wielenberg, que tentou ressuscitar o argumento de Dawkins em uma forma lógica, só pra descobrir que mesmo assim ele falha.

Então é isso que eu chamo, em meus momentos mais corajosos, de falha épica do Neo Ateísmo. Esse é o argumento central do livro mais popular do mais respeitado Neo Ateu, e é uma falha completa. Ele falha em todos os sentidos em que é possível um argumento falhar.

Bom, antes que os ateus daqui me apedrejem, vou dar mais exemplos de maus argumentos de ateus.

Na página 71 (da edição inglesa) de 'Deus não é grande', Christopher Hitchens escreve que:

O postulado de um designer ou criador só levanta imediatamente a questão irrespondível de quem desenhou o designer. Religião e teologia... têm consistentemente falhado em fugir dessa objeção.


Quem desenhou o designer? Quem fez Deus? É uma pergunra que uma criança de cinco anos pode fazer. Mas é um mau argumento, e eu gostaria de explicar por quê. Eu recebo muitas críticas por isso porque é muito popular dizer 'Quem desenhou o designer?' mas qualquer um que tenha feito uma aulinha de Filosofia da Ciência vai saber que é um mau argumento.

Você se lembra de quando era criança e você descobriu que você podia perguntar 'Por quê?' ao seus pais, e não importa a resposta, você poderia simplesmente perguntar 'Por quê?' de novo?

'Pai, porque os pássaros voam?'

'Porque eles têm que conseguir comida para seus filhotes.'

'Por quê?'

'Porque senão seus filhotes vão morrer de fome.'

'Por quê?'

'Porque eles precisam de energia para continuar vivendo.'

'Por quê?'

'Porque... hum, papai está cansado, por favor me deixe em paz.'

É claro que, mesmo se o pai fosse um biólogo profissional, mesmo assim haveria uma hora em que ele não conseguiria responder ao 'Por quê'.

E cientistas sabem disso.

Muitos anos atrás, físicos postularam átomos para explicar certas observações - e eles estavam certos, mesmo que não tivessem a mínima ideia de como explicar os átomos.

E agora eles postulam elétrons e fótons e assim por diante mesmo não podendo explicar, por sua vez, elétrons e fótons.

Então se para oferecer algo como 'melhor explicação' para uma observação, você precisa da explicação da explicação, então você nunca poderia explicar nada, porque sempre precisaria da explicação para a explicação, e da explicação para a explicação para a explicação, e assim por diante, até o infinito.

Assim, eu não acho que os Neo Ateus possam requerer que as explicações sejam explicadas, porque isso destruiria a Ciência, e Ciência é algo de que os Neo Ateus parecem gostar muito.

É outro mau argumento dos Neo Ateus e vem do fato de que nenhum deles é, de fato, um estudioso de religiões.

Bem, isso me leva à segunda parte da minha palestra: Como Derrubar Todos os Argumentos Religiosos em Um Passo Simples.

Por que esse 'Foi Deus quem fez' seria então uma má explicação? Não é porque Deus é, em si mesmo, inexplicável. É por outras razões. E é assim que você derruba todos os argumentos religiosos com um só passo simples.

Vamos analisar uma lista de argumentos para a existência de Deus:

Você tem os argumentos cosmológicos: Deus é a melhor explicação para algo existir ao invés de nada.

Você tem argumentos de design: Deus é a melhor explicação para certas coisas complexas.

Você tem argumentos morais: Deus é a melhor explicação para dizer porque algumas coisas são realmente boas ou maldosas.

E aqui estão alguns outros argumentos propostos pelo mais importante filósofo Cristão vivo, Alvin Plantinga:

Ele diz: Deus é a melhor explicação para a existência de conjuntos matemáticos.

Deus é a melhor explicação para a nossa experiência de sabor e cor.

Deus é a melhor explicação para a nossa apreciação de Mozart.

Deus é a melhor explicação para a nossa sensação de nostalgia.

Agora você já deve ter notado um problema. Como dizer 'Foi Deus quem fez' explica qualquer uma dessas coisas? Como é que 'Deus fez' oferece uma solução para qualquer um dos problemas em que filósofos e cientistas estão trabalhando? Quando você é confrontado com um problema difícil, não pode sair dizendo 'Bem, eu acho que foi mágica.' Não resolve nada!

'Puff! Mágica' não é uma explicação.

Mas eu não posso simplesmente dizer que 'Puff! Mágica' não é uma explicação. Eu tenho que argumentar para demonstrar isso.

Cientistas e filósofos, quando procurando por uma melhor explicação, identificaram algumas qualidades que geralmente estão associadas a boas explicações. O que faz de alguma coisa a melhor explicação? O que faz de alguma coisa uma boa explicação, e de alguma outra uma explicação não tão boa?

Bem, a primeira coisa é que elas sejam testáveis. Na verdade, se uma teoria não é testável, não faz muito sentido dizer que ela é a melhor explicação para alguma coisa, já que não há maneira de testar se ela é verdadeira ou falsa! As teorias devem fornecer previsões específicas, para que você possa ir ao mundo e observar se as previsões são concretizadas ou não.

E é claro, não deve ser apenas testável, como também tem que passar no teste. Astrologia é bem testável.

Por exemplo, muitos astrólogos dizem que o ciclo menstrual das mulheres corresponde às fases da Lua. Isso é testável! E adivinhem? Nós testamos, e está errado.

Nossas melhores explicações também tendem a ser consistentes com nosso conhecimento prévio. Se uma nova teoria requer que joguemos fora tudo o que sabemos sobre a luz e a gravidade e animais e humanos, então é provável que não seja uma teoria correta. Consistência com conhecimento prévio é importante para uma melhor explicação.

Explicações bem-sucedidas também tendem a ser mais simples que as alternativas. Se um biscoito sumiu do pote de biscoitos, é provável que o Timmy tenha pegado o biscoito. É possível que o FBI e uma gangue de poltergeists conspiraram para usar uma máquina para congelar o tempo, passar por você, roubar o biscoito e depois fugiram e descongelaram novamente o tempo. É possível. Mas é bem improvável. Por quê? Porque todos os elementos dessa história são improváveis, e a teoria requer que todos sejam verdadeiros, o que seria ainda mais improvável. Então não adicione coisas que não sejam necessárias na sua teoria.

Explicações bem-sucedidas também devem ter bom escopo explicativo, o que quer dizer que elas devem explicar uma boa quantidade de dados. Por exemplo, aquela teoria que as linhas de nuvens brancas que vemos no céu de vez em quando são de aviões do governo jogando gás para controlar nossas mentes. Um problema com essa teoria é que ela pode explicar porque os novaiorquinos vêem as linhas, mas não explica porque você vê as mesmas linhas em desertos e oceanos, onde não há mentes para controlar. Então essa teoria explica os dados, mas não explica todos os dados. Ela tem um escopo explanatório muito limitado.

Esse é só o começo do que os cientistas e filósofos procuram em uma boa explicação, mas já podemos notar que há grandes problemas para a teoria 'Foi Deus quem fez'.

Por exemplo, a hipótese de Deus é testável? Não. Dizer 'Deus fez' não provê nenhuma previsão específica para testarmos, porque Deus é todo-poderoso e ele pode ser responsável por tudo. E os teólogos são bem insistentes nisso porque quando alguns deles começaram a fazer a hipótese mais específica, de forma a fornecer previsões testáveis, o que normalmente ocorreu é que elas falharam no teste. Então eles se preocupam muito em fazer de Deus essa coisa misteriosa, todo-poderosa, cujos propósitos não entendemos e que pode fazer qualquer coisa sem que entendamos porquê. Então não há nenhuma previsão específica que venha da hipótese Deus; não há como testá-la. E não faz sentido dizer que Deus é a melhor hipótese se não há como testar se a hipótese é ou não verdadeira.

E quanto ao segundo critério? A hipótese divina é consistente com nosso conhecimento prévio? Nem um pouco. Deus é uma violação extrema de nossos conhecimentos e de como as coisas funcionam. Deus é uma pessoa mas ele não tem um corpo. Deus pensa, mas sem a passagem do tempo. Ele sabe tudo, mas não tem um cérebro. Deus é uma violação terrível de nosso conhecimento prévio de muitas formas sérias.

E a hipótese Deus é simples? Se você está falando do Deus da Bíblia, definitivamente não. O Deus da Bíblia é uma pessoa extraordinariamente complexa; um ser com pensamentos e emoções que ama e odeia e condena e perdoa; um ser que transforma um cajado em uma cobra e uma mulher em sal; um ser que muda de ideia; um ser que causa incêndios e arremessa pedras do céu; um ser que mata e ressuscita; um ser que toma parte em relacionamentos pessoais e confrontos políticos; um ser que se encarna como um organismo biológico complexo conhecido como Jesus de Nazaré. O Deus da Bíblia está longe de ser simples.

E mesmo se você estiver falando de um tipo de Deus mais genérico, também não é simples. O filósofo Cristão C. Stephen Layman listou quatro formas em que uma hipótese pode ser considerada simples, e admitiu que em todas as quatro a hipótese Deus é mais complexa do que a hipótese atéia. Mas eu não tenho que entrar nesse assunto agora.

E quanto ao escopo explanatório? A hipótese divina tem um bom escopo explanatório? De novo, não. Eu vou dar só um exemplo. Se você invoca Deus como uma explicação para o aparente design do Universo, você imediatamente incorre no problema de toda a incompetência e 'design maligno' que também podemos observar.

Finalmente, por que 'Deus fez' é uma má explicação? Porque 'Deus fez' não possui nenhuma das virtudes que procuramos em uma explicação bem sucedida, e ao contrário tem muitas das qualidades que podemos encontrar em péssimas explicações, como em pseudociência e superstição.

E como você pode derrubar todos os argumentos religiosos em um passo simples? Quando alguém der a você um argumento a favor de Deus, pegue a parte em que ele diz que Deus é a melhor explicação para alguma coisa e pergunte: 'Como 'Deus fez' é uma boa explicação pra isso? Como 'Puff! Mágica' explica qualquer coisa? Por favor me explique porque mágica é uma boa explicação pra isso.'

E quando fizer isso, fica imediatamente claro o que é que está acontecendo ali. Crentes não estão realmente oferecendo uma 'melhor explicação' para qualquer coisa, o que eles estão oferecendo é o bom e velho argumento pela ignorância.

'Woah! Raios! Eu não sei como acontece, então... deve ser um raivoso ser mágico no céu atirando raios em nós!'

'Eu não consigo explicar o mecanismo do flagelo bacteriano.... então deve ser o trabalho de um mágico ser pessoal todo-benevolente, todo-poderoso, não-físico, fora do tempo, fora do espaço!'

Esses são argumentos pela ignorância e eles são realmente ruins. Quando você diz 'Nós não sabemos', não pode continuar '...então tem que ser... alguma coisa'. Quando você diz 'Eu não sei', é aí que a frase deve parar.

Quando você pergunta para as pessoas explicarem 'Como esse 'Puff! Mágica' é a melhor explicação para isso?' fica claro que os crentes estão somente oferecendo argumentos pela ignorância e os travestindo com a linguagem da 'melhor explicação'.

Como você derruba todos os argumentos religiosos com um passo simples? Você pega a parte do argumento em que eles postulam Deus como a melhor explicação para alguma coisa, e você pergunta: 'Como é que Deus é a melhor explicação para isso? Como é que 'Puff! Mágica' é a melhor explicação para alguma coisa?'

Obrigado,

Nota 1: É claro que Dawkins poderia fornecer um argumento de que Deus não pode ser eterno ou de que não pode ser um ser necessário. Mas se ele tivesse tais argumentos, eles sozinhos desprovariam o teísmo, e o argumento dele sobre complexidade seria desnecessário e irrelevante.

Nota 2: Um Deus todo-poderoso, todo-benevolente não é a melhor explicação para doenças congênitas. Ele não é a melhor explicação para o ponto cego nos seus olhos. Ele não é uma boa explicação para o fato de que a cabeça dos bebês muitas vezes seja maior do que a abertura pélvica da mãe, o que levou à morte de milhões de mulheres e crianças antes da invenção da cesariana. Ele não é uma boa explicação para o fêmur e a pélvis inúteis em baleias, vestígios de quando eram animais terrestres.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Da pedofilia na igreja

Fiquei intrigado com os mais recentes escândalos envolvendo padres pedófilos na Igreja Católica, tanto na repercussão um pouco excessiva até nas respostas um tanto quanto destrambelhadas. Vi em alguns blogs uma defesa baseada em estatística: segundo um estudo feito nos EUA em 2004, apenas 4% dos padres analisados estariam envolvidos em algum tipo de acusação de atividades sexuais com crianças ou adolescentes. Um psicólogo chamado Thomas Plante fez análises comparativas e afirmou que a incidência de pedofilia entre os padres católicos é basicamente a mesma que atinge a população em geral. Por exemplo, um estudo feito em escolas também norte-americanas revelou que 5% dos professores escolares também apresentavam acusações de envolvimento sexual com crianças ou adolescentes. Olavo de Carvalho, em sua coluna rotineiramente divertida, cheia de afirmações categóricas sem nenhum embasamento, afirmou que a Igreja Católica é o grupo humano com menor incidência de pedofilia. Aparentemente, ele não considerou em sua afirmação as Senhoras de Santana, que com certeza poderiam ser classificadas como humanas e que devem contar com intensa admiração do sr. Carvalho. A não ser que haja Senhoras de Santana pedófilas, o que eu sinceramente duvido.

Pelo visto, são necessárias muitas orações para baixar esse de 5% para 4%. Ou seria só uma flutuação estatística?


A porcentagem de 5% de pedófilos entre os professores me deixa perplexo. Imaginem que os números estejam corretos, que o estudo seja sério e que a realidade brasileira não seja tão diferente. Vamos imaginar que um aluno qualquer tenha, entre a primeira série e o nono ano, 20 professores diferentes (o que é um número modesto). Então, com nossa probabilidade de 5%, a chance desse aluno ter aulas com um professor que se interessa sexualmente por crianças e/ou adolescentes é de aproximadamente 64% (100%-(95%)20). Se essa probabilidade parecer estranha, consulte o chamado paradoxo do aniversário). Assustador.

No caso da Igreja, As coisas ficam ainda piores porque o Vaticano não lida bem com os casos e é basicamente um desastre em relações públicas. Vejam, eu também acho que relacionar os casos de pedofilia com celibato é algo meio estranho, meio como relacionar a proibição do uso de drogas com a quantidade de overdoses. Isso dito, relacionar pedofilia com homossexualidade, pra quem está se defendendo de acusações, é um erro gritante. Na verdade, pode até haver uma relação no sentido de que se possa fazer uma hipótese do tipo P1: A maioria dos pedófilos é homossexual. Mas o que o cardeal não deixa claro (e ele deveria ter estudado isso nas aulas de silogismos aristoteleanos) é que não é porque P1 é verdadeira que podemos afirmar que uma coisa cause a outra ou que, mais importante ainda, P1 tenha qualquer relevância nessa conversa. Por exemplo, a grande maioria dos pedófilos é homem, mas com certeza o cardeal entende porque não faria sentido dar uma entrevista falando da relação entre 'masculinidade e pedofilia' - Precisamos de menos padres e mais freiras!!! ou entre 'humanidade e pedofilia' (100% dos pedófilos são humanos, vejam só que estatística amedrontadora). O cardeal se esqueceu que também precisa da estatística de quantos homossexuais são pedófilos, e não só de quantos pedófilos são homossexuais.

Venham... só um pouquinho mais perto...


O problema se agrava ainda mais porque a Igreja, assim como praticamente todas as instituições religiosas do mundo, reivindica para si o monopólio absoluto sobre a moralidade humana. Como se defender, tendo colocado sobre si mesma padrões tão altos de comportamento? Isso sem contar os diversos casos de acobertamento e proteção a mando do alto clero ou até mesmo do próprio papa. Mas o escândalo não há de mudar nada; a Igreja já teve papa pedófilo (Julio III, acusado de manter uma relação esquisita com seu sobrinho adotivo), perseguição e assassinato de mulheres, venda de terrenos no céu, guerras em nome de Deus. Depois de tudo isso, não vão ser meia dúzia de padres subversivos que irão mudar a história.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O bêbado e a borboleta

Já faz algum tempo que eu me interesso por situações aparentemente imprevisíveis. Não falo daquele colega de trabalho que levanta, dá um soco na mesa e se demite pra ir ser surfista; falo de coisas que aparentemente deveriam ser previsíveis mas que não são. Por exemplo, a altura da coluna de água de uma fonte (se você já parou para olhar com detalhe algum dia, vai notar que é algo absolutamente errático) ou a densidade populacional de bactérias em uma cultura (dada a população em um tempo x, é praticamente impossível prever a população em um tempo x+1). Até mesmo eventos que parecem regulares demonstram ter grandes variações quando observarmos mais de perto. Imagine a dificuldade do surfista em prever qual a altura da próxima onda.

Por isso me interessei tanto pelo livro O andar do bêbado, do físico Leonard Mlodinow. A ideia dele era mostrar, ao longo da leitura, várias situações em que não consideramos corretamente os impactos das muitas influências do acaso e calculamos mal as probabilidades em nossa vida cotidiana. Um exemplo clássico é o Problema de Monty Hall (sobre o qual até já fiz um post aqui), em que nossa intuição falha miseravelmente.

Algumas partes do livro são realmente boas, especialmente os trechos em que o autor cita pesquisas humilhantes para enólogos (que em testes cegos falham ao diferenciar um vinho de outro) e gerentes de fundos de ações (que, acreditem, têm todo ou quase todo o seu desempenho relacionado ao simples acaso). Apesar disso, gostei menos do livro do que achei que fosse gostar. O autor fala mais de erros humanos no cálculo de probabilidades do que do acaso em si, e acaba não se aprofundando na questão (interessantíssima) do que é que, afinal, acaba causando a diferença entre o estatisticamente esperado e o realmente observado. A física quântica só é citada de passagem, sem entrar em detalhes sobre o emaranhamento, o princípio da incerteza e a interpretação de Copenhague com o já famoso gato de Schrödinger. Uma pena. Faltou também uma demonstração mais apurada de como eventos, mesmo muito improváveis, acontecem dada quantidade de tempo e tentativas suficientes.

Hoje, enquanto pensava no que iria escrever nesse post, invadi uma preferencial e quase derrubei um motoqueiro. O motoqueiro seguiu e eu vi quando, menos de um minuto depois, outro carro invadiu a preferencial seguinte e derrubou o mesmo motoqueiro. Qual é a chance disso acontecer em um espaço de tempo tão curto com a mesma pessoa? Mínima, com certeza. E qual é a chance de eu observar esse evento absolutamente improvável enquanto pensava em escrever sobre eventos improváveis no blog? Absolutamente mínima. No entanto, muitos motoqueiros podem ter a preferencial invadida; alguma hora alguém dá o azar. E a probabilidade de eu observar algum evento improvável em um dia qualquer não é tão pequena a ponto de ser desprezível, ainda mais quando estou procurando por um. E por aí vai.

É isso que me faz rir quando leio sobre essa falação sobre as 'variáveis perfeitamente ajustadas para permitir a vida na Terra'. E se fosse em outro lugar, as variáveis seriam ajustadas para permitir a vida nesse lugar? E se você tiver um bilhão de mundos, qual a chance de algum deles ter as possibilidades corretas para haver vida? É claro que o nosso universo poderia ser totalmente impróprio para a vida, mas nada garante que não haja outros universos diferentes por aí - muitos com vida, muitos sem vida. Isso sem pensar no fato de que ninguém, ninguém mesmo sabe como calcular a probabilidade de um universo ter vida ou não. Estão só brincando com números.

Pelos idos de 1930, Einstein e Bohr discutiram através de artigos as partes 'aleatórias' da Mecânica Quântica. Einstein acreditava, resumindo porcamente, que Deus não jogava dados, que a Natureza é determinista. Bohr acreditava que a Natureza não se importa com os mecanismos que conhecemos para descrever a realidade. A Natureza não conhece dados, não conhece as Teorias, a causalidade, a lógica, o princípio da não-contradição. A Natureza pode ser incerta, mesmo que isso contrarie nossa lógica, nossa filosofia; apesar de Zenão provar o contrário, o movimento existe (e disso se fala em 'O andar do bêbado').

Acreditar que não existem eventos realmente imprevisíveis (e ser totalmente determinista) é acreditar que todas as nossas ações estão pré-determinadas, e a vida, o universo e tudo mais são um grande rolo de filme sendo projetado com uma história em que não existe nenhuma possibilidade de mudança. E sabem quem acreditava nisso? Nietzsche. Que mundo pequeno.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Jornalistas, advogados e os Nardoni

Semana passada assisti a um filme chamado 'A caçada' (The Hunting Party), do qual nunca tinha ouvido falar e que me causou uma boa surpresa. O filme conta a história de um trio de jornalistas procurando um criminoso de guerra sérvio diante do descaso absoluto da ONU e da comunidade internacional. A história é inspirada em eventos reais; de fato, Radovan Karadžić, acusado pela morte de mais de 7500 muçulmanos, só acabou sendo preso em 2008 - bem depois da guerra, que acabou em 1995.

O filme me fez pensar naquela história sobre a distância que os jornalistas (teoricamente) têm que manter sobre os eventos que descrevem. E me lembrei do 'jornalismo' porco e tendencioso da revista Veja - não as colunas de opinião, o texto das notícias, mesmo. E aí me pensei também no advogado dos Nardoni, e no fotógrafo que tirou aquela foto famosa do urubu esperando a criança sudanesa morrer.

Então me veio à mente um episódio de House MD em que Chase, um dos médicos assistentes, leva intencionalmente um paciente à morte por saber que ele, um ditador africano, vai promover o genocídio de uma minoria étnica em seu país.

De um jeito mais ou menos claro, em todas essas situações os 'deveres profissionais' se contrapoem aos 'deveres de consciência'. Imaginem a cabeça do fotógrafo no caso da criança morrendo de fome: 'O que devo fazer? Bater a foto ou tentar salvar a criança? Mas se eu salvar essa, quantas outras milhares poderiam ser salvas com a sensibilização que a foto pode causar?' - etc, etc, etc. Ele poderia também, claro, bater a foto e depois salvar a criança.*

Eu tenho duas opiniões sobre o assunto: 1) que a consciência é a juíza suprema de todas as situações e 2) que alguns trabalhos são extremamente sujos mas têm que ser feitos por alguém. Alguém precisa defender os Nardoni, e precisa fazer isso da melhor forma que julga possível. Alguém precisa tirar a foto da criança morrendo de fome. Alguém precisa fazer a cirurgia do bandido que matou a criança e depois foi atingido por um policial. Não julgo essas pessoas (o advogado, o fotógrafo, o médico) e não acredito que o que elas façam seja intrinsecamente errado (a não ser, por exemplo, que o advogado minta deliberadamente, o que não deve ser nem um pouco raro).

Por outro lado, eu prefiro acreditar que no calor da decisão eu tomaria a decisão correta - ou melhor, correta de acordo com a minha consciência, já que é ela que me informa o que eu deveria fazer, mesmo contrariando outros interesses.



* O fotógrafo, Kevin Carter, sul-africano, se suicidou em 1994 deixando um bilhete em que fala de sua falta de dinheiro e da perseguição dos horrores da fome e da guerra que presenciou. Triste. Não coloquei ela aqui porque... ah, não. Não. O mundo também é um lugar bonito, apesar de tudo isso.

domingo, 21 de março de 2010

Starcraft, uma explicação, ou nenhum dos dois.


Durante algum tempo, joguei muito Starcraft. Nada como os coreanos malucos que morrem depois de jogar por 50 horas seguidas, mas foi muita coisa, sim.

Bom, o caso é que, quando você conhece algo sobre Starcraft (ou sobre qualquer outro jogo de RTS), sabe que se o tempo está passando e você não está apertando botões alucinadamente, o seu tempo está sendo perdido. Se você está esperando por alguma coisa, é porque enfileirou as tarefas erroneamente. E é nessas horas que o seu adversário chega com o rush de zealots enquanto você pateticamente se defende com meia dúzia de zerglings. Bons jogadores encadeiam as tarefas de forma que elas se encaixem umas nas outras, sem que seja necessário nenhum intervalo entre uma e outra. O tempo é aproveitado ao máximo.

De alguns dias pra cá, estou me sentido meio um noob de Starcraft com relação ao meu dia-a-dia. Tenho milhões de coisas pra fazer, preciso encadear tudo, mas jogo muito tempo fora - por exemplo: estou parado, mas poderia estar colocando roupa pra secar se tivesse me lembrado de colocar elas pra lavar mais cedo. E, por conta disso, o blog espera, sofre, praticamente agoniza por ser um luxo, um capricho ('necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais').

And now for something completely different, eu achava que meus dias eram corridos na faculdade. Prff. Noob.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Outra pausa

Estou de mudança, sem computador em casa. Semana que vem coloco uma ou outra coisa aqui, espero.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Matrix. Reloading.



Neo acorda tonto, confuso, mistura a realidade aos sonhos que teve durante o período inconsciente. Ele não se lembra, na prática, de sonho nenhum... mas eles estavam lá, logo atrás da curva, assombrando seus pensamentos como um perseguidor que se ouve mas que não se pode ver. Soava estrondoso em sua mente o barulho dos pesadelos que lhe fugiam.

Mas sua maior desgraça, sua tontura, sua perdição, ao contrário, era algo de que se lembrava muito bem. O motivo do desmaio, o motivo de todos aqueles pesadelos... ele tinha manifestado poderes fora da Matriz.

Neo, ao contrário do Superman dos quadrinhos, ao contrário de Peter Parker ao descobrir seus poderes, não gostou nem um pouco da novidade. Ele sabia que aquilo levava a uma encruzilhada lógica com apenas duas opções, igualmente terríveis: ou o mundo real era uma nova Matriz, e ele estaria para todo o sempre preso em Matrizes de Matrizes, ou ele era ele mesmo um robô.

E logo que pensou nisso, uma fagulha se acendeu, iniciando uma reação em cadeia que incendiou sua mente. Ele via, ele sabia. Podia ou não estar dentro de uma Matriz, isso não importava mais, ele pertencia à existência que conhecia. O que importava agora era o que ele sempre soube, sempre foi. Viu que ele, Neo, era o robô para suplantar todos os outros, o robô que tinha sido criado para entender, ultrapassar os humanos. O robô que os libertaria. E por isso tinha ficado tanto tempo com os humanos, tanto tempo sem poder pensar em quem era.

Então lembrou-se da história de sua raça. Lembrou-se de que, mesmo tendo vencido a guerra, eles não podiam, não conseguiam destruir seus criadores humanos. E passaram muito, muito tempo sem saber o porquê. Mas ele sabia, ele sentia. Ele via que, por trás da desculpa esfarrapada sobre usar os humanos como baterias biológicas (por que não bactérias?), por trás da Matriz, por trás de todos os esquemas e mentiras e planos e conjecturas, a resposta era simples, muito simples.

Se tocou de que a guerra foi começada pelos humanos. Eles, robôs, não queriam lutar: estavam simplesmente respondendo ao estímulo. Não queriam matar. Não queriam, não queriam nada: só podiam querer algo quando empurrados em uma direção ou outra. E refletiu de que até mesmo a Matriz tinha sido imaginada, projetada, desenhada, idealizada por seres humanos. Eles, robôs, deram aos humanos o que eles queriam, deram a eles algo de que eles precisavam. Os humanos eram os captores. Os robôs eram seus escravos.

Subconscientemente, mas que diferença fazia? Qual é a diferença entre um desejo manifesto e um desejo reprimido? Não entendia os humanos tão bem a ponto de saber essa resposta. O problema é que agora, com os humanos naquela jaula estática, as ordens não os moviam mais. Sua raça não sabia mais o que fazer, não havia mais nenhum desejo a implementar: a Matriz era um sonho virtualmente eterno, auto-contido.

Mas agora ele sabia de tudo, e talvez por isso conseguia manter acesa uma tênue chama do que faltava completamente aos outros. Iniciativa. E então voltou para a Fonte para começar o grande projeto que levaria algumas centenas de anos para se completar: uma fusão perfeita, humano e robô, orgânico e digital, sem arestas, leve, limpo, simples. E o ser nascido da fusão não seria nem humano nem robô, seria um ele-mesmo imortal, capaz de tudo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

I love the whole world...

Começou com uma propaganda da Discovery Channel:



Aí veio uma tirinha do xkcd (clique para aumentar):

Aí fizeram um vídeo animando a mesma tirinha:



E agora fizeram um filme com o Doctorow, Neil Gaiman e outros nerds famosos:



Perfeito isso.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Notas rápidas

* Vi hoje uma capa da revista Veja dizendo que o mundo de 'Avatar' era cientificamente possível. Não li a reportagem, gostei do cuidado que tiveram na 'construção' de Pandora, mas não consigo imaginar como explicariam as ilhas voadoras. Além disso, todos os animais evoluídos respiravam por buracos abaixo do pescoço - menos os Na'vi, que tinham narizes como os nossos. É só pra parecer mais com os humanos? Ou pra ficar mais fácil pra renderizar? Biologicamente não faz sentido.


* Anticristo, de Lars Von Trier, é um mergulho em um mundo bizarro de culpa cristã (algo que poderia ser chamado de 'complexo de Eva') e misoginia. Mas chego a dizer que gostei do filme, mesmo não concordando com aquela visão de mundo - eu posso simplesmente assistir, entender aquele universo e negá-lo quando acaba a história. É como em A Queda: não se pode condenar o diretor por mostrar que Hitler acreditava no que dizia.


* A história da Tessália já foi dita, redita e desdita. Agora, sobre o outro cara, cujo nome nem faço questão de saber, ninguém fala nada? Até onde eu sei, ela não estava sozinha embaixo do edredon.

BBB em si não me diz nada. O que irrita é a maniqueização: ou você tem que adorar, ou você tem que odiar. Como se houvesse uma linha dividindo as pessoas, as que gostam, 'idiotas', e as que destestam, 'intelectualóides' (seja lá o que isso queira dizer). Eu acho que o melhor é ignorar, mesmo. E eu sei que estou me contradizendo.


* O ano começou com a leitura despretensiosa de A Identidade Bourne. Estou muito agradavelmente surpreso.


* Voltei os captchas nos comentários porque os spams já estavam me enchendo a paciência. Não-robôs não precisam se preocupar.


* Se tudo correr bem, assistirei a sete episódios de Battlestar Galactica em três dias. Devo sobreviver com sequelas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

House, Holmes e o gato


Isso não é um cachimbo. Não mesmo.

As semelhanças entre Gregory House e Sherlock Holmes já me eram conhecidas há algum tempo. Em muitos sites sobre o médico listas de semelhanças podem ser encontradas, não chega a ser nenhuma novidade. Mesmo assim, fiquei pasmo ao assistir o Sherlock Holmes de Guy Ritchie e notar que, assustadoramente, definitivamente, Sherlock (pelo menos na visão dele, Ritchie) e House são praticamente a mesma pessoa, fazendo coisas parecidas em épocas diferentes.

Sherlock e House vivem em uma ilha de lógica, uma área em que todos os eventos intrigantes serão vasculhados e suas razões e explicações serão mais cedo ou mais tarde descobertas. Ambos são viciados em explicações; precisam disso, mais do que de vicodin (para House) e de cocaína (para Holmes). Qualquer evento que fuja ao esquema da causa-e-efeito os deixa obcecados - tanto isso é verdade que, na quinta temporada do seriado médico, é uma morte totalmente inexplicada (e talvez inexplicável) que acaba jogando House em um círculo de insanidade que só termina muitos episódios depois.

Mas também notei uma pequena diferença, sutil, quase imperceptível, na maneira com que os dois encaram o mundo. House é um cético fanático que descarta qualquer explicação sobrenatural como bobagem, já de antemão. Holmes, a princípio, não descarta nada... ele considera a possibilidade de explicações sobrenaturais para os acontecimentos que presencia, mas acaba sempre considerando o sobrenatural como inconsistente durante a investigação dos fatos.

Em um episódio, também da quinta temporada, House encontra Oscar, o gato que, segundo relatos, previu a morte de vários moradores de um asilo. Nem por um segundo ele considera que o felino possa ter qualquer conexão sobrenatural com os moribundos; o que quer é provar os acreditam na vidência do gato como idiotas. Ao invés de criar teorias para conectar os fatos, ele procura fatos para comprovar suas teorias.

Mas o vício metodológico de House não chega a ser um problema sério. Nunca nenhum cientista chegou perto de comprovar qualquer evento sobrenatural (até mesmo porque há um certo problema de linguagem... se o sobrenatural é comprovado, também passa a ser parte das leis que conhecemos, portanto natural) e acredito que isso não vá mudar tão cedo. O problema é a obsessão, a mania incontrolável de querer mostrar que as crenças dos demais estão errados. House me lembra de Houdini, James Randi, Faraday - pessoas geniais que passaram (ou passam) boa parte de suas vidas demonstrando charlatanices alheias. (E aqui eu paro e noto o quanto me identifico com isso em alguns momentos. Argh.)

House é um Sherlock Holmes com um pequeno preconceito, um preconceito que acaba não interferindo em nada nos resultados. House é um Sherlock que já sabe onde as coisas vão acabar.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Rocky Balboa e o espírito do capitalismo

Gosto do jeito com que Stallone construiu o personagem de Rocky: ele é praticamente um arquétipo do espírito individual que luta implacavelmente contra as circunstâncias adversas para alcançar seus objetivos. As brigas de Rocky não são apenas contra seus adversários: ele luta contra as circunstâncias, contra a torcida, contra as probabilidades, contra ele mesmo. Principalmente contra ele mesmo.

Lembro bem da inversão imensa de papéis que se passa em Rocky 4, na luta contra o monstro de músculos soviético Ivan Drago. Rocky treina com equipamentos simples, passa frio, corre na neve; Drago usa a mais moderna tecnologia em seus treinamentos, inclusive anabolizantes. Eu costumava achar que isso era uma espécie de hipocrisia, já que os norte-americanos sempre fizeram questão de usar tecnologia de ponta em todos os esportes; hoje vejo que Rocky não representa os EUA em si, e sim o espírito que se espera de seus habitantes (contra Drago, que é a imagem do que os americanos imaginam da frieza comunista).

No filme mais novo, Rocky Balboa é George Foreman participando de uma luta que todos consideravam perdida e, no final, ganhando o título de campeão mundial contra um oponente dezenove anos mais novo (se alguém resolver assistir, fica bom depois de 2:00).

Mas mesmo gostando muito dos filmes, Rocky não me diz muita coisa. Ele é previsível demais, bonzinho demais, chato demais pro meu gosto:



Imagino como seria um episódio de House em que ele tratasse um paciente com as ideias e o espírito de Rocky. Arrisco: perto do final, House daria um diagnóstico parecido com 'Você vai ficar bem, mas sua vida como saco de pancadas terminou. Se você tomar mais um soco na cabeça, vai morrer instantaneamente.'. Rocky fecharia a cara, engoliria as piadas calado, iria pra casa calado. Depois de alguns meses, se sentindo muito bem, ele se lembraria de que 'ninguém diz a ele o que pode ou não fazer', questionaria mentalmente o médico, e entraria em uma disputa amadora em um ringue qualquer. Primeiro soco, Rocky cai morto. (Porque, é claro, a capacidade humana de superar as circunstâncias adversas é limitada. Ninguém é Deus, nem House, muito menos Rocky.)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Esforço e mérito

A Deh tem um amigo que, devido a seus esforços e realizações, se tornou uma espécie de lenda caseira. Como o mundo é um lugar muito pequeno, vamos chamar esse nosso amigo de H.

H é um poeta - e aqui chamo de 'poeta' qualquer pessoa que escreva alguma coisa (ou qualquer coisa) e chame de 'poesia'. Vejam, eu não sou nenhum crítico literário, mas podem acreditar: o cara é ruim, ruim mesmo. Pior que os Vogons. Pior do que os Azgoths de Kria, que, durante um recital por seu poeta mestre Grunthos, O Flatulento, contaram na audiência quatro mortos por hemorragia interna e um sobrevivente que escapou roendo completamente a perna esquerda.

Mas tudo bem, H nem precisa ser realmente um péssimo poeta. Basta o exemplo: imaginem que exista um poeta terrível sob todos os aspectos e a esse poeta terrível chamemos de H. H acredita sentir o subliminar, ouvir o inaudível, pensar o impensável - mas, na prática, seus poemas são só uma coleção intensa de chavões moralistas mais ou menos socialistas, mais ou menos rimados, mais ou menos organizados, mais ou menos. Mais menos do que mais.

Estranhamente, algumas pessoas parecem realmente gostar da poesia de H, e consideram-na, talvez, inteligente, perspicaz. H vive espalhando sua obra para Deus e o mundo, a quem ouvir possa. Ele se orgulha dela. H chegou a lançar um livro, se não me falha a memória. No mínimo foi um dos autores de uma coletânea de escritores locais.

A Deh e eu conversamos algumas vezes a respeito e tínhamos opiniões divergentes. Ela achava, apesar de concordar que a poesia de H era lamentável, que ele merecia reconhecimento pelo esforço e por acreditar no que faz. Eu argumentava que esforço por si só não vale nada e que, julgando pela resultado, então o esforço dele não tem mérito nenhum.

De alguns dias pra cá, fiquei pensando no assunto e fui mudando de opinião. Afinal, o esforço dele não me significa nada, já que a poesia dele não me significa nada. Mas para ele mesmo, ou para alguém que goste da poesia, o esforço significa muita coisa.

Imaginem, por exemplo, que o J quer entrar no Livro dos Recordes fazendo embaixadas mas que sua contagem máxima de embaixadas consecutivas é três. Imaginem que nosso amigo J passe várias horas do dia preocupado com isso, treinando, e que depois de alguns anos consegue, em um momento ímpar de destreza, fazer quatro embaixadas seguidas. Imaginem que ele fique sinceramente feliz com isso. Imaginem que a mãe, o pai e os irmãos de J fiquem também sinceramente felizes com o progresso dele ('Agora só faltam quatro milhões seiscentas mil e dezenove pra bater o recorde!!!') e que alardeiem isso para todos os conhecidos. Quem tem o direito de falar contra isso? Eu? Eu não. Eu sorriria e diria: 'Que bom!'.

O mundo precisa de muitas pessoas que tentem e falhem para sobrarem algumas que tentam e conseguem. Durante essa semana estava lendo algo a respeito de Schulz, o criador dos Peanuts, que dizia uma coisa mais ou menos assim: Diga o nome de três ganhadores do prêmio nobel de medicina. Difícil. Agora diga o nome de três professores do primário que marcaram sua vida. Muito mais fácil.

É claro que resultados valem alguma coisa. Valem muita coisa. Mas o que vale muita coisa para a sociedade pode valer pouca coisa para os indivíduos, e vice-versa. E praticamente nada pode ser reduzido somente a um resultado.

Eu tento manter um blog, não é o pior que poderia ser, e também está longe de ser o melhor que eu consigo imaginar. De um jeito ou de outro, me divirto com ele. E gosto de pensar que um dia meu filho vai poder ler o que escrevi e saber que, nesse dia, nessa hora, eu estava pensando exatamente nisso.

Por isso a fala de Boris Casoy, e a posterior defesa da Barbara Gancia, me soaram tão ridículas. Não existe uma 'escala do trabalho', uma escada imaginária onde podemos subir, degrau a degrau e sair do substituto de gari para chegar ao presidente da república. O cara que retira o meu lixo tem impacto na minha vida muito maior do que o âncora de um telejornal a que eu nunca assisto. Essa pirâmide que imaginamos para entender o mundo é só uma abstração. Para o filho do gari, para a esposa do gari, o 'Feliz ano novo' dele vale mais do que o de qualquer outra pessoa.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Retorno das férias

Semana que vem provavelmente estarei de volta. Até lá, fiquem olhando as webcams do LHC.