segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Foucault e o sistema

(Alguns spoilers de Tropa de Elite 2 adiante)


Quando eu era adolescente, adorava falar do tal 'sistema'. O sistema era uma coisa inexprimível com outras palavras, um amontoado amorfo que aglutinava tudo o que pertencia ao status quo e/ou era de alguma forma diferente do que eu acreditava ser correto. Com o tempo, notei que o termo não carregava sentido nenhum e fui me afastando dele e da ideia que carregava - enquanto, ao mesmo tempo, notava que muitas das pessoas que falavam do tal sistema não tinham a menor ideia do que queriam dizer. Assim como eu.

Fiquei surpreso ao ver que o Tropa de Elite 2 usava essa mesma terminologia. E mais surpreso ainda quando o filme mostrou que o termo pode, sim, carregar algum significado. O sistema, para o Tropa 2, é o modo corrupto com que as coisas são feitas, o dia-a-dia da falcatrua, o leviatã de mil cabeças formado por uma pseudo-organização totalmente descentralizada. O sistema é a carteirinha de estudante usada além do limite, os 50 reais pra escapar da multa de trânsito, a nota fiscal em valor mais alto pra enganar o chefe, o desvio no imposto de renda, a ultrapassagem pela faixa da direita. O sistema é o jeito Gerson de levar a vida.

No primeiro filme surgiu o Capitão Nascimento, uma figura violenta e incorruptível que levou ao delírio a classe média pouco-intelectual, meio-reacionária. (Perdi a piada? Conhecem o texto do meio-intelectual, meio de esquerda? Então, é o equivalente serrista dele). Agora, no segundo filme, algumas pessoas disseram que o Coronel Nascimento finalmente se rendeu ao ativista de Direitos Humanos e reconhece a inferioridade de seu método. A esquerda venceu, acreditam.

Não concordo. No segundo filme, o Coronel Nascimento reconhece que o problema é mais complexo do que parecia ser no início; mesmo assim, Foucault continua sendo (para ele) um idiota. E o filme vai mais além, e deixa a impressão de que não importa muito a sua opinião sobre Foucault quando existe um outro Estado parasitário dentro do original. Entre os que querem que o Brasil se desenvolva, uma discussão ideológica é possível; mas antes disso, é preciso eliminar os corruptos que infestam toda a cadeia policial/governamental. Não há ideologia que resolva quando o bolso do deputado vem na frente.

O filme fala muito pouco de corrupção e interesses escusos nos meios privados, o que é perdoável, já que não é esse o foco. Os jornalistas, em Tropa de Elite 2, são tratados como guardiães da verdade. Há a exceção do programa policial wagnermontístico, mas ainda acho muito pouco. Talvez haja assunto para um terceiro filme nesse espaço; mostrar que as coisas não são sempre assim, que a mídia também é um poder que pode ser corrompido e manipulado.

Finalmente, vale lembrar que a polícia e o Estado são subgrupos da população; se a população é corrupta, os policiais serão corruptos e os políticos serão corruptos (assim como dentistas, advogados, analistas de sistemas, etc, etc). A diferença é que, quanto mais poder o corrupto possui no mundo legal, mais estrago ele faz quando se entrega ao mundo ilegal.

A desesperança que fica quando acaba Tropa de Elite 2 é terrível - provavelmente por soar tão verdadeira, tão factível.

2 comentários:

Henrique Rossi disse...

Como sempre, mandando muito bem!

To parando pra deixar este comentário para uma brevíssima observação:

- como cap. Nascimento, odeio o Foucault do biopoder, estado policial, panopticom, etc. etc.

- mas admiro muito o Foucault que prova que o pensamento é imaterial e que o poder procura dominá-lo. Esse é um gênio.

Tiago disse...

Tu diz:

"Entre os que querem que o Brasil se desenvolva, uma discussão ideológica é possível; mas antes disso, é preciso eliminar os corruptos que infestam toda a cadeia policial/governamental. Não há ideologia que resolva quando o bolso do deputado vem na frente."

Mas como eliminar a corrupção sem discussão ideológica? Aliás, discussão ideológica é algo separado do problema da corrupção?
No segundo filme o Cap. Nascimento se rende ao Estado de Direito e vai procurar levar sua luta não contra ele (como fazia antes), mas dentro de suas regras e jogos (como faz na CPI). É um claro recuo no seu pensamento de "extrema-direita" apresentado no primeiro longa. Em certo sentido, se aproxima mais de Foucault sim, pois ele passa a desconsiderar que o poder está centralizado em algo ou alguém. Ele fala de um tal "sistema" corrompido. Tal sistema se aproxima da ideia de micropoderes de Foucault e também de sua concepção de episteme.
Discordo de você, ele se reaproxima sim de Foucault e, mais do que isso, reaproxima-se humilhado. O segundo filme é uma derrota simbólica depois do debate gerado pelo primeiro.
Agora, deve ficar claro que a leitura que é feita da obra de Foucault no primeiro longa é rasa e patética.