terça-feira, 23 de outubro de 2012

Culpa [quase] cristã


Algumas pessoas gostam de encontrar mecanismos de substituição onde eles não existem. Você deixa de adorar a Deus, eles dizem, e passa a adorar o dinheiro. Eu acredito que a saída de uma ideia da mente (errada ou não) dá espaço a outras, mais novas, que também podem ser certas ou erradas. Mantendo o exemplo, se você deixa de acreditar que Deus define o que é bom e certo, vai ter que buscar novas fontes pro que acredita ser bom e certo (mesmo que a explicação seja tão simples quanto dizer que você segue a própria consciência).

A marca mais profunda que a religião me deixou foi a culpa. Mesmo depois de muito tempo já tendo abandonado os aspectos ritualísticos do credo, a culpa ainda estava ali, e ainda deve restar um pouco dela. Culpa por ser humano, por ser falho, por nascer errado. Você é todo errado, meu filho, eu fiz você [errado] mas você vai ser uma pessoa melhor se se sentir culpado por ter nascido humano por todos os dias da sua vida. Tem todo um aspecto psicológico envolvido, uma situação de vulnerabilidade perante uma autoridade (religiosa ou não), mas não vou entrar no mérito porque a discussão, hoje, é outra.

Durante essa semana, veio a público a tragédia dos índios Guaranis Caiovás, uma tribo de 170 pessoas que vive no Mato Grosso do Sul já em condições sub-humanas, e, ainda por cima, querem tirar a terra onde eles residem atualmente. A situação é realmente lamentável e tem uma petição online aqui (cuja eficiência é duvidosa, mas vá lá). Bom, Eliane Brum escreveu a respeito e começou seu texto assim:

"A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão."

Aí agora eu, que nunca sequer tinha ouvido falar dos índios Caiovás, sou cúmplice de genocídio. Você que está aí sentado na cadeira lendo,  e que, como quase todo mundo, acha que é uma pessoa que pisa na bola de vez em quando, mas que no geral é um bom ser humano, pois é, cúmplice de genocídio.

Sou só eu ou esse jeito de falar lembra um pouco a culpa religiosa?

Eliane Brum acha que porque fazemos parte da civilização em que o problema ocorre então somos responsáveis pelo problema. Pela mesma lógica, também somos responsáveis pelas mortes na guerra do Iraque, pelas mortes no Word Trade Center, pelos espanhois pilhando as culturas nativas americanas etc etc etc. Somos responsáveis pela criança que pede dinheiro no sinal e pelas fábricas cheias de escravos da Nike.

De certa forma o raciocínio não é de todo errado, já que, pra viver como vivemos, ocorreu um processo em que todas essas coisas aconteceram ou ainda estão acontecendo. Mas não somos agentes ativos em nenhum dos casos. Mesmo no caso de omissão, não é como se alguém estivesse te contando "olha, vou ali matar uns índios mas não conta pra ninguém, tá?". A situação é muito mais complicada e no geral, como bem disse a Tina, o cidadão comum mal sabe o que fazer.

Obviamente temos que fazer algo a respeito de todas essas coisas. Obviamente chamar a atenção é importante. Acusar de uma forma tão direta ajuda em quê? Devo me sentir culpado porque não me sinto culpado pela situação dos índios?

Mas a causa indígena é só um exemplo. Algumas pessoas defendem causas (totalmente legítimas) de uma forma muito equivocada. "Todo homem é um estuprador em potencial." Cansei o número de vezes em que li coisas parecidas, ou textos que tergiversam em torno da ideia mas não a nomeiam diretamente. Em tempo: eu me identifico com a causa feminista, acredito que eu mesmo seja feminista, acredito que esteja fazendo a minha parte, eu tento evitar a todo custo ter atitudes machistas e... ganho um carimbo de "estuprador em potencial"? E não é só uma pessoa falando, é fácil de comprovar.

[Não vou citar mais exemplos porque o post já está bom em polêmica, mas, acreditem, parei por conveniência e não por falta de material.]

Não sou genocida, não sou estuprador em potencial, não sou racista por ter nascido em uma sociedade em que o racismo é tolerado. Rejeito esses rótulos e não me sinto culpado nem por ter nascido homem, nem por ter nascido branco, nem por ter nascido ocidental. Mas não me orgulho disso, aceito como um fato qualquer, algo que veio de fábrica e que não posso mudar. Me orgulho de viver a cada dia tentando ativamente não ter atitudes machistas, racistas, preconceituosas, e educando meu filho pra que, no caso dele, essas atitudes sejam ainda mais raras e que o mundo, em geral, seja um lugar melhor. E, tomara, um mundo com menos culpa.

7 comentários:

Tina Lopes disse...

Ah, eu detesto ser forcada a sentir culpa, mas essa eu vou carregar comigo, sim. A gente (acho q vc tbm) eh do tempo da Pororoca e do Quarup no Globo Reporter. A ditadura, ao mesmo tempo q passava de trator, cinicamente nos fazia sentir proximos dos nossos indígenas. Lembro de querer viajar pela Transamazonica! Onde foi parar esse interesse? Eu que era doida pelo cenário de Aritana, esqueci de tudo e de todos. Hoje eu me sinto culpada sim. Mas porque sou eu. E me nego a dirimi-la, como escrevi lá, com cliquei no FB. Mas sou eu. ;)

André disse...

É verdade, o interesse diminuiu desde a época em que éramos crianças. Mas também isso não é culpa nossa. É toda uma circunstância. E também não se interessar por uma causa não quer dizer que você seja contrária a ela, sei lá. Tem muitos tons de cinza entre o branco e o preto.

Outra coisa que fico pensando é que essa culpa passageira também não ajuda em nada. Aqui não estou falando de você, tou falando dessa coisa de, aparece um desastre, todo mundo fica eufórico querendo ajudar, passa o tempo e ninguém mais lembra. E aí, ajudou em que ficar se sentindo mal naquele dia? Muito mais efetivo como você mesma disse é pensar em colocar essas pautas na hora de votar. É pouco mas é o que se pode fazer, né?

Renata disse...

André, gostei muito do seu post e concordo inteiramente com o que disse. A culpa tem sido usada como recurso mesmo, pra que as pessoas se movimentem pra fazer alguma coisa. Além de desonesto, afinal de conta NÃO somos culpados pelas atitudes de ninguém além das nossas, penso que é bastante ineficaz. A culpa me parece ser apenas uma bola de ferro no pé. Incomoda muito, mas não me faz andar mais rápido ou mesmo andar.

André disse...

Isso aí, Renata. Obrigado pelo comentário :)

Arthur Luiz Tavares disse...

Valeu a pena esperar mais de um ano por um post seu.

Concordo. Das generalizações burras que todos fazemos, as que tu descreveu talvez sejam mesmo as piores.

Anônimo disse...

Que bom ver que você decidiu um post para o seu blog. Eu sou o "intruso" que foi no seu SKOOB pedir para que continuasse escrevendo para o seu blog. E o texto, a propósito, está ótimo, toca em pontos relevantes dos debates ideológicos do país (e quiçá, do mundo).

Anônimo disse...

E para ser sincero, achei que você estava exagerando sobre a história do "estuprador em potencial", mas eis que encontrei no blog da Lola (famosa feminista e constante alvo de machistas anônimos da internet) o seguinte comentário:
"Portanto, educar os homens não pode esbarrar no limite do distanciamento. Para se estar dentro do sofrimento do outro é necessário que o agente esteja plenamente consciente de que sua brutalidade (passiva ou ativa) é diretamente responsável pela tortura compreendida. Só haverá uma empatia real quando o homem (inclusive os bons) assumirem totalmente a condição vergonhosa de monopolista do sofrimento. Se o estupro é uma violação de todas as mulheres, e não somente da vítima em foco; é necessário que o masculino aceite que todos os homens são os violadores, não apenas o estuprador factual."
Estarrecedor.