terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Esforço e mérito

A Deh tem um amigo que, devido a seus esforços e realizações, se tornou uma espécie de lenda caseira. Como o mundo é um lugar muito pequeno, vamos chamar esse nosso amigo de H.

H é um poeta - e aqui chamo de 'poeta' qualquer pessoa que escreva alguma coisa (ou qualquer coisa) e chame de 'poesia'. Vejam, eu não sou nenhum crítico literário, mas podem acreditar: o cara é ruim, ruim mesmo. Pior que os Vogons. Pior do que os Azgoths de Kria, que, durante um recital por seu poeta mestre Grunthos, O Flatulento, contaram na audiência quatro mortos por hemorragia interna e um sobrevivente que escapou roendo completamente a perna esquerda.

Mas tudo bem, H nem precisa ser realmente um péssimo poeta. Basta o exemplo: imaginem que exista um poeta terrível sob todos os aspectos e a esse poeta terrível chamemos de H. H acredita sentir o subliminar, ouvir o inaudível, pensar o impensável - mas, na prática, seus poemas são só uma coleção intensa de chavões moralistas mais ou menos socialistas, mais ou menos rimados, mais ou menos organizados, mais ou menos. Mais menos do que mais.

Estranhamente, algumas pessoas parecem realmente gostar da poesia de H, e consideram-na, talvez, inteligente, perspicaz. H vive espalhando sua obra para Deus e o mundo, a quem ouvir possa. Ele se orgulha dela. H chegou a lançar um livro, se não me falha a memória. No mínimo foi um dos autores de uma coletânea de escritores locais.

A Deh e eu conversamos algumas vezes a respeito e tínhamos opiniões divergentes. Ela achava, apesar de concordar que a poesia de H era lamentável, que ele merecia reconhecimento pelo esforço e por acreditar no que faz. Eu argumentava que esforço por si só não vale nada e que, julgando pela resultado, então o esforço dele não tem mérito nenhum.

De alguns dias pra cá, fiquei pensando no assunto e fui mudando de opinião. Afinal, o esforço dele não me significa nada, já que a poesia dele não me significa nada. Mas para ele mesmo, ou para alguém que goste da poesia, o esforço significa muita coisa.

Imaginem, por exemplo, que o J quer entrar no Livro dos Recordes fazendo embaixadas mas que sua contagem máxima de embaixadas consecutivas é três. Imaginem que nosso amigo J passe várias horas do dia preocupado com isso, treinando, e que depois de alguns anos consegue, em um momento ímpar de destreza, fazer quatro embaixadas seguidas. Imaginem que ele fique sinceramente feliz com isso. Imaginem que a mãe, o pai e os irmãos de J fiquem também sinceramente felizes com o progresso dele ('Agora só faltam quatro milhões seiscentas mil e dezenove pra bater o recorde!!!') e que alardeiem isso para todos os conhecidos. Quem tem o direito de falar contra isso? Eu? Eu não. Eu sorriria e diria: 'Que bom!'.

O mundo precisa de muitas pessoas que tentem e falhem para sobrarem algumas que tentam e conseguem. Durante essa semana estava lendo algo a respeito de Schulz, o criador dos Peanuts, que dizia uma coisa mais ou menos assim: Diga o nome de três ganhadores do prêmio nobel de medicina. Difícil. Agora diga o nome de três professores do primário que marcaram sua vida. Muito mais fácil.

É claro que resultados valem alguma coisa. Valem muita coisa. Mas o que vale muita coisa para a sociedade pode valer pouca coisa para os indivíduos, e vice-versa. E praticamente nada pode ser reduzido somente a um resultado.

Eu tento manter um blog, não é o pior que poderia ser, e também está longe de ser o melhor que eu consigo imaginar. De um jeito ou de outro, me divirto com ele. E gosto de pensar que um dia meu filho vai poder ler o que escrevi e saber que, nesse dia, nessa hora, eu estava pensando exatamente nisso.

Por isso a fala de Boris Casoy, e a posterior defesa da Barbara Gancia, me soaram tão ridículas. Não existe uma 'escala do trabalho', uma escada imaginária onde podemos subir, degrau a degrau e sair do substituto de gari para chegar ao presidente da república. O cara que retira o meu lixo tem impacto na minha vida muito maior do que o âncora de um telejornal a que eu nunca assisto. Essa pirâmide que imaginamos para entender o mundo é só uma abstração. Para o filho do gari, para a esposa do gari, o 'Feliz ano novo' dele vale mais do que o de qualquer outra pessoa.

12 comentários:

. disse...

O que mais me chama a atenção no meu amigo é mesmo o lance de ele acreditar no que faz. Incondicionalmente. Sério, a comoção que isso me provoca é diretamente proporcional ao horror que tenho ao resultado dos esforços dele.

D disse...

Eu acho o seguinte, o gari só é necessário porque 1. as pessoas são porcas e 2. não existe uma tecnologia capaz de substituir ainda por completo o trabalho do gari. Mas a pergunta que nos faz pensar a respeito de uma escala de trabalho é: qual o esforço necessário para se transformar em gari e para se transformar em CEO de uma multinacional? Qual o esforço necessário para se transformar em gari e para se transformar em um especialista médico? Qualquer um pode ser gari, mas poucos podem ser CEO ou médico.

Eu acredito que exista sim uma escala de trabalho o que não significa dizer que o trabalho de um gari não é válido.

D disse...

Em uma democracia perfeita, onde há oportunidades para todos, quem é que gostaria de ficar com o trabalho do gari?

Henrique Rossi disse...

Mas D, o texto não versa em absoluto sobre isso. O André disse que ainda que a profissão do gari da sua cidade seja desimportante, ele é mais importanto para a ordem da sua vida do que o apresentador de TV, o que é uma verdade - está corretíssimo. Imagine a diferença que não faz para o filho de um gari ouvir o "feliz ano novo" do seu pai. Que lhe importa a felicitação do presidente da república? O texto é mesmo muito interessante e suscita toda uma série de questionamentos de alto valor.

André disse...

Henrique, isso aí mesmo. E, além disso, que os 'valores' que damos para as profissões não são intrínsecos, mas sim relativos, pessoais. Eu, por exemplo, valorizo muito as profissões científicas. Por outro lado, alguém que gosta do ambiente corporativo provavelmente vai achar as profissões acadêmicas lentas, inertes, entediantes, inúteis.

Um jeito fácil de ver como isso é verdadeiro é pensar nesses testezinhos em que você tem que escolher pessoas 'úteis' para estarem com você em uma ilha deserta. Um médico seria certamente útil, tanto na nossa sociedade quanto lá. Mas de que serviria um analista de sistemas? Um jornalista? Um advogado? E essas são profissões certamente prestigiadas na sociedade em que vivemos. Por outro lado, alguém que entende de sobrevivência na selva passa a ser extremamente valorizado.

O caso é que, sempre que você for pensar em uma 'escala do trabalho', vai precisar de alguém pra atribuir os valores e de uma situação em específico em que a importância possa ser avaliada. As profissões não tem um valor intrínseco de importância nelas mesmas.

Ah, e mais uma coisa: esforço não tem nada a ver com quem vai ser ou não CEO. Quem vai ser CEO ou não acaba sendo uma questão de resultado, assim como para ser médico, ou advogado, ou qualquer coisa. Ninguém quer saber quanto tempo você estudou; querem que você dê a resposta certa. Claro que, para saber a resposta certa, normalmente precisamos nos esforçar, estudar, etc e tal, mas isso só é necessário de um ponto de vista secundário.

D disse...

André, se como você disse: ", além disso, que os 'valores' que damos para as profissões não são intrínsecos, mas sim relativos, pessoais." Você não deveria ter achado ridículo o valor que o Boris Casoy deu a profissão de gari, pois é apenas a opinião pessoal dele, com relação a "escala de trabalho" que ele considera importante na mente dele.

Por exemplo, segundo o meu ponto de vista, ninguém deveria nascer para ser gari. Deveriam haver meios para que essa força de trabalho braçal pudesse ser aproveitada de uma forma mais intelectual, de forma que o mundo esteja em constante evolução.

Henrique Rossi disse...

O problema é que as pessoas querem ser gari. Ok, eu talvez tenha exagerado na análise psicanalítica, mas o sujeito que não estuda p**** nenhuma tem alguma chance em tornar-se médico quando adulto? Reclamem o quanto quiser, o fato é que o ensino é universalizado no Brasil com poucas regiões de excessão. Muitos chegam à USP tendo estudado a vida inteira na escola pública. Como não concluir que o gari fez tudo o que estava ao seu alcance para tornar-se gari?

Não existe essa de "deveriam haver meios para que essa força de trabalho braçal pudesse ser aproveitada de uma forma mais intelectual". É uma Lei deste mundo: o ser humano faz merda porque quer!

Henrique Rossi disse...

Ou seja: de nada adianta ficar de carinhosinho com quer se manter analfabeto funcional. Essa gente destrói a própria vida porque quer.

Vi vários documentários sobre a situação do ensino no Brasil. Sabe o que de pior existe na educação brasileira? Os alunos: desinteressados e vagabundos. Aqui no Estadão, em Taubaté, espancam professores. Oras, merecem ser gari... Por que não lhes daríamos o que querem?

André disse...

'Por exemplo, segundo o meu ponto de vista, ninguém deveria nascer para ser gari. Deveriam haver meios para que essa força de trabalho braçal pudesse ser aproveitada de uma forma mais intelectual, de forma que o mundo esteja em constante evolução.'

Eu concordo com isso. Mas também, como o Henrique disse, fico pensando que existem pessoas que preferem esse tipo de trabalho, mesmo que você dê a elas condições de ter um trabalho diferente. Ninguém é igual a ninguém, né?

Henrique, meu próximo post vai ser exatamente sobre o assunto que você levantou. Eu concordo com você, mas, claro, tenho minhas reservas.

Henrique Rossi disse...

Bem, pensando de forma carinhosa ninguém discordaria do trecho que você destacou. Parece-me, porém, que há certa utopia, certo romantismo nele. É certo que seria muito melhor que todos tivessem cargos de responsabilidade e as operações fundamentais fossem desempenhadas por robôs, mas seria isso justo diante do que as pessoas têm feito? Se o pobre senhor não fosse gari o quê ele seria? Certamente um cadáver. O problema, como já escrevi, é que as pessoas não estão dispostas a pagar o árduo preço para merecerem ter um trabalho intelectual.

Henrique Rossi disse...

Caro André T, meu amigo sem face,

Era inevitável que o polimático começasse a alçar voos mais ambiciosos. Imagino que você tenha belíssimos comentários a fazer dos meus textos, mas está se abstendo sem necessidade, como seu eu necessariamente o combatesse. Oras, isso nunca aconteceu. Sempre acolhi sua opinião com carinho não somente pela estima que lhe tenho mas também porque suas ideias o merecem. Com os seus comentários, você ajuda o meu blog a ser melhor. Por favor, participe com suas ideias. Elas são necessárias!

André disse...

Hahaha, Henrique... Quando eu tiver paciência eu volto a discutir com você lá. Ando meio taciturno na internet ultimamente, tou tendo que fazer força até pra postar aqui! hehehe