Conto de memória porque não consegui localizar o trecho. Stálin veio visitar uma cidade pequena e fez um discurso a autoridades locais. O minúsculo auditório estava lotado e, com os olhos do NKVD em todos, ninguém queria ser o primeiro a parar de aplaudir, terminada a fala do grandioso líder. Oito minutos depois, todos ainda aplaudindo. Dez, quinze minutos depois, ainda os aplausos. Um responsável por uma fábrica local não aguentou mais, parou de aplaudir e se sentou. Na mesma noite estava preso.
Voltando pro presente, você está falando bobagem no twitter e vê algumas pessoas denunciando isso e aquilo outro. Com maiores ou menores evidências de culpa, com gravidades maiores ou menores. E dizem que se você não denuncia, se não repercute, você é cúmplice (você é o inimigo?). E, claro, as circunstâncias e o peso são totalmente diferentes, mas o modo de raciocinar é idêntico ao da história soviética. Ou você está conosco ou está contra nós.
No mundo real, na rua, o status quo é machista, conservador, preconceituoso. Nas redes sociais, principalmente no twitter, a situação é bem diferente. A capacidade de mobilização dos grupos é impressionante. Há algum tempo, apareceu em um blog da Revista Pais & Filhos um post crítico contra uma suposta "moda da amamentação". A resposta foi imediata: pipocaram comentários avacalhando a autora, a revista, o texto, a vida, o universo e tudo mais. A mobilização continuou até que a revista retirou o texto e publicou um pedido de desculpas. Para algumas pessoas ainda assim não foi suficiente e as críticas continuaram, o que acabou rendendo mais alguns textões de facebook que evidentemente não li.
Não gostei do texto contra a "moda da amamentação", achei demagógico e pouco esclarecedor. Mas isso pouco importa. Não é suprimindo uma ideia que se divulga uma outra. O patrulhamento em turba causa cegueira: o texto estava num canto, em um blog, não na publicação principal da revista. Na mesma página, contei pelo menos 3 links falando dos benefícios da amamentação. Pouco importava.
Suprimir uma ideia é acreditar que o seu julgamento sobre aquela ideia é superior ao das outras pessoas. A ética é simples e o veredito é rápido: Eu, ao chegar ao site, que muito provavelmente não tinha visitado nenhuma vez antes, vou ler o texto criticando a amamentação e perceber que ele é errado - mas, outras pessoas podem não pensar assim, então vamos forçar a revista a eliminá-lo. Mais uma vez salvamos o dia, "não passarão". Eu sei o que é melhor pras outras pessoas; qualquer discordância deve ser perseguida e eliminada.
Como já escreveu David Butter, é a ética da biscoiteira:
É a ética da biscoiteira: a remoção do pote para negar a fome. Com o pote longe, a biscoiteira jura livrar meninos e meninas de uma ânsia capaz de levá-los à hipertensão, ao diabetes e às cenas de reportagens de TV sobre como os gordos estão em todos os lugares. [...]
Agora, a ética da biscoiteira só acalma a biscoiteira. A ética da biscoiteira é uma não-ética, por negar a escolha. Ela se ancora num egoísmo solidário: por vocês, eu, só eu, decido ser melhor assim. Em nome do combate a opressões, a biscoiteira traz uma nova opressão, a de seu juízo “emancipado”. Quer purificar fazendo sumir. Quer negar a violência violentando.
Costumo brincar que, em um futuro não muito distante, o último a compartilhar o texto do Sakamoto vai virar alvo da patrulha nas redes sociais. Tenho medo da brincadeira ter cheiro de realidade.