terça-feira, 5 de abril de 2011

Transcendência


Algumas palavras têm um peso tão grande que acabo preferindo não utilizá-las a ter que ficar me explicando exaustivamente quando são mal entendidas. 'Energia' é uma delas. 'Sustentabilidade', 'espiritualidade'. Algumas expressões também são muito pesadas e contém bastante ideologia: 'Exclusão social', por exemplo.

Muitos ateus e agnósticos abandonam também o conceito de 'transcendência', já que rejeitam a ideia de uma dimensão de existência externa para onde se possa transcender. Afinal, transcendente é aquilo que vai além, que atravessa, que ultrapassa. Normalmente a ideia é aplicada para falar da relação humana com Deus, e por isso há uma carga tão grande na palavra.

Mas o assunto não é assim tão simples. É possível transcender nossa existência de muitas formas sem recorrer a nenhum expediente sobrenatural. Nossas ideias, nossos genes, sobrevivem em nossos filhos e nossa família, em nossa raça. Somos ligados biologica e quimicamente a cada ser vivo no planeta. Somos ligados fisica e quimicamente a cada estrela e cada planeta do universo. Tenho um profundo sentimento de importância e de humildade simultâneos quando penso que os átomos que formam meu corpo foram forjados no interior de estrelas antigas, mortas há mais tempo que a nossa imaginação consegue conceber.

'Sem Deus, tudo é permitido', disse um dos irmãos Karamazov. A versão longa do argumento é que é necessário um agente externo para nos fornecer moralidade, para nos ensinar o certo e o errado. Mas o erro do raciocínio é que o agente externo não precisa ser necessariamente Deus; todos prestamos contas à sociedade, aos familiares, à nossa própria consciência. Para conviver em sociedade, é preciso transcender nossa consciência e aplicá-la a todos, procurando acordos onde haja conflitos. Afirmar que é impossível ser moral sem Deus é o mesmo que afirmar que não se pode usar placas de trânsito porque Deus não nos deu sua opinião sobre o sentido em que deve correr cada uma das ruas. (Na verdade existem muitos problemas com esse argumento, esse é só um deles. Mas o assunto é chato o suficiente para eu me manter afastado dele.)

Pensei em tudo isso por causa da tirinha de ontem do xkcd, onde ele mostra um gráfico de uma curta expectativa de vida - provavelmente causada por algum câncer - com o comentário de que 'minha visão habitual não se aplica nesse caso'. Nas entrelinhas, o que está escrito é que pouco importa entender perfeitamente a estatística do gráfico quando se tem a vida de algum familiar em jogo. Mas abraços e palavras de conforto - não necessariamente religiosas - funcionam com todo mundo.

Um comentário:

Henrique Rossi disse...

Por favor, ensine aos ateus que mesmo entre os fenômenos naturais há transcendência... :) Esse texto já foi um bom começo...