terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Involução Parte 2 - Meu colega físico

Desde que ele foi indicado para trabalhar conosco, eu sentia que alguma coisa não estava muito do jeito que eu esperava. O rapaz, estudante de Física, tinha alguns comportamentos esquisitos e gostava de forró... nada contra, mas não era compatível em nada com a minha imagem do estudante de Física padrão.

Até aí, nada de mais. O problema começou quando ele percebeu que eu me interessava pela área e começamos a conversar sobre notícias e curiosidades. Notei que ele preservava uma postura levemente arrogante durante nossas conversas, mas eu acreditava que era tudo justificável porque ele passava boa parte dos seus dias calculando integrais complicadíssimas e eu só lia as notícias do Slashdot. Ele tem suas razões, eu pensava. E eu sabia, ainda sei, que se eu for me alistar para uma seleção antes do fim do mundo, a profissão que vou escolher é de computeiro, não físico*.

Mas as coisas engrossaram de verdade quando ele veio me falar do moto contínuo. "Ai, cara... você não tá falando sério, não é?", eu disse. E ele disse que estava e que tinha visto em uma revista de divulgação científica importante de cujo nome ele (convenientemente) não se lembrava. Eu dizia "Cara, mas e a termodinâmica, e a segunda lei, rapaz?", e ele respondia (com cara de quem não sabia do que eu estava falando) que as teorias estão aí para serem quebradas e que o que é realidade hoje há 10 anos atrás era utopia. E eu dizia (já sem esperança de convencê-lo em seu território) que se isso tudo fosse verdade todo mundo estaria falando disso nesse momento e os jornais todos estariam publicando e os carros estariam sendo movidos com ímãs. E ele disse que logo eu ia ver que tudo o que ele estava falando era verdade. Para evitar uma briga, deixei ele falando sozinho.

O tempo passou; eu continuava abastecendo meu carro com gasolina.

Há algum tempo atrás, ele veio com uma novidade: tinha descoberto como ganhar na MegaSena se utilizando de um infalível cálculo probabilístico. Fiquei ansioso, já estava pedindo 10% do prêmio anterior quando ele me deu a notícia que meu (grande) lado cético já esperava: ele ainda não havia ganhado.

Voltei a mim: eu conhecia o rapaz, trabalhava com ele, e apesar de não considerá-lo totalmente desprovido de inteligência, também não era nenhum gênio. Perguntei: "Mas cara, a chance de ganhar não é 60!/(54! * 6!)?" (O que dá mais ou menos 1/50 milhões). E ele disse que não, e que tinha aprendido na faculdade uns cálculos probabilísticos muito complicados que explicavam que as coisas não eram bem assim, e que era possível descobrir os números que seriam sorteados se todos os cálculos fossem realizados corretamente, mas que eram muito complicados.

Pausei a conversa e pensei. O que eu queria ter ali conversando comigo era um gênio com um potencial imaginativo incrível que havia descoberto algo extraordinário. Eu poderia ajudá-lo a realizar os cálculos e ficaríamos ricos. Mas, na verdade, o que eu tinha era um estudante de graduação em Física, com um certo histórico de alegações infundadas e que agora afirmava algo que me parecia completamente fora da realidade. E, se fosse verdade, alguém já teria feito e o jogo todo não faria mais sentido. Resolvi não ser crítico demais adotar o método socrático... comecei a fazer perguntas.

"Mas olha, se você descobriu como fazer essas contas todas, porque você ainda não ganhou nada?", perguntei. Ele disse que já tinha jogado perto e acertado cinco dezenas mas que dava muito, muito trabalho. E eu disse: "cinco dezenas? Ganhou a Quina?", ao que ele respondeu que não, que dessa vez só estava testando. Mantive a linha: "Mas então, vamos fazer no próximo sorteio, você me ensina a fazer as contas, dividimos o trabalho e a grana do sorteio." Ele disse que não, que eram vários dias de contas, trabalho demais. Eu: "mas você não acha que 10 milhões justificam uma semana ininterrupta de trabalho?". Ele desconversou falando da complicação dos cálculos.

Mudei minha tática: "Então, se dá tanto trabalho, vamos colocar os cálculos no computador. O computador faz as contas muito melhor do que nós fazemos.", disse eu feliz ao falar sobre um assunto que domino. Mas ele disse que não era possível colocar as contas no computador, que não dava, e eu insistia e queria saber por que motivo, e ele finalmente disse que era porque envolvia o Princípio da Incerteza e outros aspectos não computáveis da Quântica.

Parei a discussão. A Lei de Godwin reza que "Se uma discussão na Internet se prolonga por algum tempo, a chance de aparecerem comparações envolvendo Hitler ou nazistas se aproxima de 100%": há algum tempo tenho notado que a Física Quântica é o equivalente da Lei de Godwin para as baboseiras pseudo-científicas (não que a Física Quântica seja baboseira em si mesma, mas seu nome é utilizado como ferramenta protetora de baboseiras). Fui menos agressivo do que esperava; só disse a ele para fazer as contas que julgasse necessárias e se lembrar dos colegas de trabalho caso tudo funcionasse.

O tempo passou; meu carro agora é movido a álcool e meu colega não trabalha mais conosco. Tive notícias dele há alguns dias, deixou o ramo de computação embarcada e trabalha como webdesigner. E continuamos os dois pobres.

* - Havia um teste na minha juventude em que você tinha que selecionar 10 pessoas para repovoar o mundo em um grupo de umas 30. Havia um médico com câncer, uma mulher deficiente mental que estava grávida, e por aí vai. Andei procurando o teste na internet mas não encontrei nada.

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